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como um fructo do nosso terreno esse gosto sincero da bella antiguidade que reinou sempre nos collegios dos Jesuitas. Quando os seus fundadores estudaram em Santa Barbara, este sentimento acabava de expandir-se; os professores entregavam-se-lhe com uma especie de transporte; elle passou para os discipulos; e quando a estes coube a vez de assentar sobre uma base nova a educação da mocidade, não sómente não regatearam o logar que era conveniente dar á cultura litteraria, mas acceitaram como a primeira necessidade d'esta cultura o estudo dos grandes mestres que não fallaram a lingua do christianismo.-Mas a vantagem mais directa que os companheiros de Ignacio tiraram da frequencia de Santa Barbara foi a amisade de Diogo de Gouvêa. Não sómente este doutor tomou por elles uma viva affeição, mas, vendo-os possuidos de um tal amor de proselytismo, julgou que eram proprios para a obra que o rei de Portugal planeara, de modo que insistiu com D. João III para se servir d'elles na propagação da fé nas suas colonias do Oriente.» Das relações de D. João III, que, depois das informações de D. Pedro de Mascarenhas, tratou de travar com Ignacio, resultou o serem enviados para Portugal os dois companheiros Francisco Xavier e Simão Rodrigues. O rei não se contentou em acolhel-os com enthuziasmo, mas escreveu directamente a Carlos v, a sua irmã a imperatriz D. Isabel, e a Francisco I, para que empregassem a sua influencia junto do papa Paulo III para conceder á Companhia a confirmação, e o proprio monarcha se encarregou de concorrer com todas as despezas necessarias para a expedição das bullas. Xavier seguiu a viagem para a India, para a missão evangelica, e Simão Rodrigues ficou organisando a provincia de Portugal, e submettendo a familia real e a côrte á suggestão fanatisante dos Exercicios. No emtanto o novo instituto encontrava uma opposição implacavel em Hespanha; o bispo Melchior Cano considerava-o em 1545 uma sociedade anti-christã, como refere Orlandino. 2 O theologo conhecia bem por onde elles se afastavam da essencia do Christianismo, e em uma sua carta ao padre Regla, confessor de Carlos v, escrevia em 1548: «se deixarem caminhar os Padres da Companhia no mesmo passo, em que tem começado, queira Deus que não chegue tempo, em que os reis lhe queiram resistir e não possam.» Pelo seu lado, o bispo de Toledo, D. João Martins Silicio, em 1552 prohibe aos Jesuitas o confessarem na sua diocese, e suspende

1 Op. cit., t. 1, p. 301.

2 Historia da Companhia, Liv. vIII, n.o 45 e 46.

o sacramento de confissão a todos os clerigos que tiverem praticado os Exercicios. Os bispos presentiam que a Companhia lhes minava o poder, base da constituição da Egreja, para tornar o papado independente dos Concilios. Porventura a vinda de Francisco de Borja a Portugal em 1553, e o extraordinario acolhimento que recebeu na côrte, seria para contrastar com a animadversão que a Companhia encontrara em Hespanha. Na côrte andava uma exaltação enorme produzida pelos Exercicios e uma fascinação voluptuosa pela oração mental; as praticas de Francisco de Borja eram escutadas em extasis. O infante D. Luiz queria fazer-se jesuita; Ignacio entendeu que elle servia melhor a Companhia ficando como coadjutor temporal.

O bispo de Paris, Eustachio du Bellai, em uma censura elaborada por ordem do parlamento, em 1554, accusa-os da alteração do catholicismo: «E parece que elles se querem dizer, fazer e constituir só por si Egreja...» Em França alevantava-se a poderosa onda da Universidade de Paris, que proclama na sua primeira conclusão do 1.o de dezembro de 1554: «Esta nova Companhia, que toma particularmente este estranho titulo do nome de Jesus, que recebe indifferente e licenciosamente toda a sorte de pessoas, por mais illegitimas e infames que sejam... á qual se tem dado tantos e tão diversos privilegios, indultos e liberdades, principalmente no que toca á administração dos sacramentos da penitencia, da eucharistia; e isto sem algum respeito, nem differença de logares ou pessoas; da mesma sorte no que toca á funcção de prégar, lêr e ensinar com prejuizo dos Ordinarios, da ordem hierarchica; e tambem com prejuizo das outras religiões, e dos principes e senhores temporaes; contra os privilegios das Universidades; emfim com grande oppressão e vexação do povo, parece offender a honra da religião monastica, enfraquecer o exercicio publico, honesto, pio e muito necessario das abstinencias, ceremonias e austeridades; dá occasião de saír livremente e se fazer apóstata das outras religiões; tira e rouba a obediencia devida aos Ordinarios; priva injustamente os senhores tanto ecclesiasticos como seculares dos seus direitos; excita perturbações em uma e outra policia, muitas dissenções, e queixas entre o povo, muitos debates, demandas, contendas, emulações e diversos scismas. Emfim, tendo sido examinadas e consideradas diligentemente estas e outras muitas cousas, parece que esta Companhia é perigosa nas materias da fé; perturbadora da paz da Egreja, encaminha a arruinar o estado monastico, e nascida mais para destruir do que para edificar.»1

1 Compilado no Retrato dos Jesuitas, traduzido e publicado em 1761, a p. 4.

A Sorbona viu claro, emquanto ao reconhecimento da inefficacia das communidades asceticas, e emquanto á missão retrograda sustentada pela Companhia, atacando o poder episcopal para dar ao Catholicismo uma nova fórma.

Parece que em resposta a esta gravissima accusação da Universidade de Paris D. João III offerecera á Companhia de Jesus a direcção do Santo Officio em Portugal; o provincial padre Diogo Mirão acceitou a offerta com a condição do assentimento do Geral. O fallecimento do infante D. Luiz veiu desarranjar este plano; mas, fiado na boa vontade de D. João III, Loyola tratou de obter d'elle um testemunho authentico da consideração que lhe merecia a Companhia, para contrapôr aos theologos de Paris. N'este mesmo anno escreveu D. João III ao bispo de Coimbra, D. João Soares, a seguinte carta:

«Reverendo bispo.-Eu tenho muita affeição aos padres da Companhia de Jesus pelo grande louvor que se segue a Deus nosso Senhor, proveito espiritual das almas, e a mim muito serviço, e a todos meus reinos e senhorios grande consolação no religioso exemplo, virtuosa vida, conversão, doutrina, industria e zelo do amor de Deus e das almas, que os padres e pessoas da Companhia têm mostrado e mostram cada dia em meu reino, desde o tempo que ha que n'elles edificam collegios da Companhia, com que tem feito e fazem muito fruyto, de que eu tenho recebido e recebo muito contentamento e serviço, e The sou por isso em muita obrigação, pelo que vos encommendo muito que por isso assim ser, como sabeis, queiraes dar d'isso vossa fé e testemunho por escripto, e de como sabeis de quanta qualidade e exemplo são as pessoas que em a dita Companhia se recebem, etc.»

Ha aqui um evidente intuito de refutar a accusação da Sorbona; o rei apresentava pelos seus embaixadores em Roma estas informações episcopaes a favor da Companhia. Além da prédica e da direcção espiritual, os Jesuitas mostravam-se solicitos propagadores da instrucção, introduzindo-se em toda a parte por meio dos seus Collegios, verdadeiras trincheiras contra o espirito critico da Renascença. Ranke assim caracterisa a sua influencia: «Os Jesuitas podiam ser sabios e piedosos á sua maneira; mas ninguem dirá que a sua sciencia assentava sobre uma livre manifestação do espirito, que a sua piedade partisse do fundo de um coração simples e ingenuo. Eram bastante instruidos para terem celebridade, para attrairem a confiança, para formar e conservar discipulos; eis aqui tudo. Nem a sua piedade, nem a sua sciencia caminhavam por estradas francas, illimitadas, nunca pisadas; comtudo, tinham uma qualidade que os distinguia essencialmente, era um

methodo severo. Tudo era calculado, porque tudo tinha o seu fim. Uma semelhante associação, em um mesmo corpo, de sciencia em um gráo sufficiente de profundidade e de zelo infatigavel, de trabalho e de persuasão, de pompa e de mortificação, de propaganda e de unidade systematica, nunca existiu antes d'ella no mundo. » 1

Na reacção contra o Protestantismo, no seu duplo aspecto politico e intellectual, os Jesuitas empregaram os dois systemas de combate: junto dos reis e poderosos da côrte pela confissão, e principalmente pela direcção espiritual; pela educação gratuita nos seus Collegios, e pelo assalto ás Universidades, embaraçavam o exercicio do livre-exame, fechando as intelligencias no circulo estreito das suas disciplinas pedagogicas. Comprehende-se como a primeira geração da Companhia foi essencialmente docente, porque todo o saber se achava nos fins do seculo XVI confinado nas Universidades, e uma vez conquistadas ellas pela connivencia com os reis, seus protectores, estava alcançado esse ponto de apoio com que Leibnitz dizia que podia transformar o caracter de uma época. Porém, fóra das Universidades, estavam em exercicio iniciativas mentaes de individuos que communicavam entre si os resultados da livre-critica, e que vieram a determinar a grande elaboração scientifica do seculo XVII; n'esta situação, a posse das Universidades já não dava á Companhia a auctoridade e influxo social que pretendia, e teve portanto a segunda geração jesuitica, sob os Geraes italianos, de se tornar essencialmente politica, creando essa moral accommodaticia do probabilismo, tão sympathicamente recebida nas côrtes. Como reacção pedagogica ao Protestantismo, escreve Cournot acerca do ensino jesuitico: «O Protestantismo tinha saído das Universidades do norte, e tinha feito do padre um doutor; era um motivo sufficiente para que o governo da Egreja catholica desconfiasse de ora em diante da instituição universitaria e recorresse a outros meios para se assegurar da direcção absoluta da educação da mocidade. Cumpre notar que o episcopado, muito apropriado já de longe a patrocinar e a inspeccionar em cada diocese as escholas menores, a que hoje chamamos ensino primario, não era azado a tomar a direcção do ensino das humanidades, da philosophia, das sciencias, do que actualmente se chama ensino secundario e superior. É necessario, para escolher ou formar o pessoal de um tal ensino, para classificar, distribuir, promover os individuos segundo os seus talentos, para os reformar segundo as neces

1 Histoire de la Papauté, t. 1, p. 137.

sidades, ou achar-lhes outros empregos, corporações cuja acção se estenda sobre vastas circumscripções, e cujos membros tenham menos inamovibilidade do que a que se concede ao clero de segunda ordem, cujas funcções eram então reputadas beneficios temporarios. Uma congregação de regulares, cujos membros são na maioria dedicados ao ensino, podendo comtudo receber outras missões, acha-se nas melhores condições administrativas e financeiras que uma corporação leiga, ou mesmo padres seculares, accidentalmente distraídos do serviço parochial, que é a condição do seu estado. Assim, a partir da reforma protestante, vêem-se todas as novas congregações, que se formam no seio do catholicismo, proporem-se como fim, ou como o meio mais ostensivo da sua influencia, a propaganda do ensino de collegio; e os Jesuitas, sobretudo n'este terreno particularmente favoravel, alcançam exitos tão notaveis que ecclipsaram todos os seus rivaes. Não obstante, a experiencia evidenciou que nas condições das sociedades modernas já se não pode tratar, como nas velhas edades do mundo, de modelar as gerações ao grado dos instituidores, e tornar a pedagogia um meio de governação. N'este genero, como em outros, a sociedade acceita os serviços mais ou menos interessados que lhe vêm prestar, sem dar em troca o que se espera d'ella. Os Jesuitas fizeram particularmente essa experiencia. Sob o ponto de vista da grande politica da Companhia os seus collegios serviram para bem se recrutarem, para separarem e attraírem para si os individuos uteis, mas só isto. A sociedade aproveitou-se do que aquella instituição pedagogica parecia offerecer de bom e commodo, sem admittir por isso a sua doutrina e os seus interesses. Os triumphos que elles alcançaram n'este campo da educação tornaram-se-lhe nocivos, fazendo-os mais confiados e conseguintemente mais bulhentos e mais ambiciosos., 1

Apesar da multiplicação dos seus Collegios, os Jesuitas não puderam obstar á secularisação progressiva do ensino, nem manter nas Universidades a preponderancia da synthese theologica contra o espirito positivo que se ia manifestando pela cultura de novas sciencias e pela actividade industrial do proletariado. O negativismo systematico propagava-se como uma consequencia da dissolução do antigo poder espiritual, que, embora não apparecessem ainda as condições para ser substituido, era já absolutamente impossivel restaural-o. Os Jesuitas,

1 Considérations sur la marche des Idées et des événements dans les temps modernes, t. 1, p. 197.

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