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«Antónia, debruçada no corrimão da escada, espreitava para baixo, surpreendida pelo chapéu e vestido de Laura, mas não ousava aproximar-se.

«No entretanto chegara o resto da cavalgada. João Soares de Carvalho cumprimentou com afecto, ainda que menos expansivo, suas cunhadas, e, apeando-se, ajudou a descer sua mulher, a quem as duas irmãs receberam nos braços, derramando lágrimas de enternecimento.

«Ana Soares, irmã mais nova das senhoras de Alvapenha, enfraquecida pela doença, trémula pela emoção que a vista dos sítios onde passara a infância e de pessoas tão queridas lhe determinava, vacilou aos primeiros passos que deu. Laura apressou-se a dar-lhe o braço, que ela parecia preferir e, emquanto João Soares dava ordens em baixo aos criados, tendentes à melhor acomodação das cavalgaduras, a mãe e a filha, precedidas pelas boas senhoras que, à vista de sua irmã, puseram de parte todo o estudo da etiqueta constrangida, para seguirem apenas os ditames do instinto, entraram na sala verde destinada ao alojamento dos hóspedes.

«Depois de conduzir sua mãe a uma cadeira de braços, objecto de antiga existência na casa, Laura aproximou-se da janela a contemplar a perspectiva campestre que se descobria de lá.

«D. Ana, no meio de suas irmãs, passeava por tôda aquela sala olhares de um sentimento

exaltado e susceptível, que tôdas as organizações recebem quando afectadas por estas doenças que lavram latentes na economia, em sintomas que atormentam em acessos ou paroxismos, mas apenas gastam as fôrças do corpo para exaltar as do espírito.

-))

Então está muito doentinha, mana Anica?»-preguntou D. Genoveva, com inflexão de voz carinhosa.

«- Não muito»-respondeu a irmã.— «Apenas uma fraqueza que êstes ares do campo hão de curar, espero eu.

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- Hão de, hão de; Nosso Senhor há de permití-lo» acrescentou D. Quitéria.

<- Os ares do campo? E não é só isso»-continuou a doente-«e a companhia das manas e a lembrança daqueles tempos que aqui passámos juntas e em que havemos de falar muito, não é verdade?

«As duas senhoras sorriram, fazendo um gesto de aquiescência.

«E também a companhia da... » - E a bondosa senhora procurou com os olhares alguém na sala, que não encontrou. «Que é dela? Quem ?»-preguntou D. Quitéria

«

Laurinha?

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«<--Não... Antónia porque não aparece?

«<a

Eu nem sei, disse a irmã, levantando-se. Querem ver que a mulher tem vergonha ?» —E, chegando à porta, chamou pela criada, no inte

rior da qual se travava, efectivamente, naquele instante uma luta entre os desejos de ver a sua ama doutros tempos e o seu acanhamento. «Emfim sempre veio trazida a reboque por D. Quitéria.

«Está muito estranha, esta menina» disse D. Quitéria ao entrar na sala.

«Venha cá, Antónia! Já se esqueceu de

mim?

Quem, eu, minha senhora? Eu não me esqueço assim de-pressa.

«- Então não fuja, venha cá.

«Antónia ganhou ânimo e aproximou-se. Laura voltara-se e examinava com interêsse a criada, em que sua mãe lhe falára bastas ve

zes.

«Antónia cumprimentou-a o mais lisonjeiramente que pôde.

«E a conversa generalizou-se.

«João Soares de Carvalho entrou, por sua vez, na sala.

«As cunhadas levantaram-se ao vê-lo.

«Por quem são, manas. Nada de cerimónias. Laura» disse, voltando-se para a filha — «uma das tuas malas já está desempedida.

«Laura pediu para a conduzirem ao quarto que lhe era destinado e Antónia, que terminou o seu estudado cumprimento ao cunhado das senhoras, foi por estas mandada a acompanhá-la, Subindo as escadas com a vivacidade

que se traía em todos os seus gestos e movimentos, Laura dirigiu a palavra a Antónia:

<-- Já principio por lhe dar incómodo, senhora Antónia...>>

Após um curto diálogo com a criada, descreve Júlio Denis, na intimidade do quarto de Laura, o abandono a que ela se entregou depois da fatigante jornada. Desatados os cabelos loiros, que caiam pelas costas abaixo, «mostrava-se em todo o fulgor da sua deslumbrante beleza». Não acompanharemos o romancista na descrição que faz da encantadora sobrinha das senhoras de Alvapenha nem ainda o que ela sentiu quando, mais tarde, ao aproximar-se da janela, contemplou a paisagem da aldeia num esmorecer de tarde de Julho. Iremos buscá-la daqui a pouco, em companhia de D. Quitéria, para o chá.

Antes, porém, examinemos a passagem que acabamos de trasladar.

Desta scena, tão cheia de pitoresco, tirou Júlio Denis, para a Morgadinha dos Canaviais, alguns episódios, a propósito da chegada de Henrique à Casa de Alvapenha. Tudo ali é mais simples e reduzido. Do lado dos hóspedes é apenas Henrique de Souzelas que chega a cavalo, acompanhado pelo almocreve, e que, antes de atingir o patamar da escadaria solarenga, tem de atravessar um comprido eido

onde os cães de guarda lhe infundem respeito. Falta todo o movimento da comitiva do sr. João Soares de Carvalho, em que se destaca, desde logo, a figura insinuante e viva de Laura. Do lado da Casa de Alvapenha há a recebê-la as duas senhoras e a criada Antónia, ao passo que no romance definitivo é apenas D. Dorotea e a velha criada Maria de Jesus que fazem as honras do solar. A atmosfera que se respira nas duas scenas é a mesma; mas a descrição do romance provisório excede em movimentação e, íamos a dizer, em beleza, a que encontramos depois na Morgadinha.

Júlio Denis teve de modificar a passagem para orientar o romance em sentido diferente, como daqui a pouco veremos.

Nesta descrição há um pormenor que interessa destacar: a maneira como Júlio. Denis descreve a doente D. Ana, atacada daquela doença, latente na economia, que, gastando as forças do corpo, exalta as do espírito. Dir-se há que o romancista, ao tempo ainda vigoroso e até despreocupado, quis mostrar, numa das suas personagens, o mal que lhe ia lentamente minando a existência.

Não aparece o episódio no romance definitivo. Este esboceto deve ter sido elaborado. em Ovar, ou logo a seguir, e a Morgadinha só em 1867 viu a luz da publicidade, quando a doença de Júlio Denis tomara já proporções

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