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cista, essa fugacidade na objectivação afectiva, foram a conseqüência, ao menos numa certa fase da sua vida, da incerteza da saúde, que se agitava entre esperanças desmedidas de cura e horas negras do mais acentuado desalento. O estudo que, dentro em breve, faremos dos seus romances, que é a história dos seus amores, mostra bem quanto era comedido êsse defeito, que êle teima, por vezes, em exagerar. Pôsto isto, apreciemos outros aspectos da sua vida íntima.

Seria Júlio Denis um crente?

Que foi educado no catolicismo não pode haver dúvida, e que, durante algum tempo, foi um praticante, parece deduzir-se de algumas passagens das suas cartas e das suas obras.

«É à pressa que lhe escrevo hoje, pois ouço já tocar o sino para a missa e não quero faltar a êsse dever católico que quási todos os domingos observo».

Assim escreve Júlio Denis, de Ovar, em 9 de Agosto de 1863, a sua madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho. ¿ Fá-lo para comprazer com a que foi a melhor companheira da sua adolescência, ou é a confissão verdadeira da sua maneira de sentir em matéria religiosa? Em Dezembro de 1869 escreve a Custódio

Passos estas palavras, que denunciam algumas hesitações do seu espírito:

«Pedes-me desculpa de haver talvez com as tuas palavras ferido as minhas crenças. Não feriste.

«Eu, meu Passos, não quero blasonar de scéptico, porque creio até que o não sou. É certo, porém, que não possuo tais e tão melindrosas crenças que as tuas palavras pudessem assustar. Tenho, às vezes, sondando-me com o firme intento de me conhecer, chegado quási a acreditar que estou vivendo em uma santa ilusão, supondo-me menos scéptico do que outros que o são mais manifestamente. Desvio, porém, sempre que posso, o espírito destas sondagens, porque prefiro iludir-me e ignorar o que lá vai no fundo. Daí vem o não me chocarem as expressões de desalento ou descrença dos outros, e muito menos quando tão fortes motivos há para elas, como os que tens».

Desta passagem deduz-se, ao lado de uma certa incerteza, que êle pretende afastar do seu pensamento, que Custódio Passos o considerava um crente. Nem doutra maneira se compreende que pedisse desculpa de quaisquer palavras que lhe escreveu como podendo ferir os seus sentimentos religiosos.

Tinham decorrido seis anos entre a carta

dirigida a sua madrinha e aquela que agora escrevia ao seu amigo. Mas já em 1863, quando veraneava em Ovar, era médico. Não se pode, por isso, dizer que fosse o vento agreste da sciência que fizesse estiolar os princípios religiosos em que fôra educado.

Quer durante o seu período escolar, quer nos primeiros tempos que se lhe seguiram, nunca deu demonstrações de descrente. Pelo contrário, quando discutiu na sua dissertação se as diversas raças humanas derivam, ou não, do mesmo par, inclinou-se para a unidade da espécie humana, o que está de acordo com o Génesis, que a todos os mortais da nossa espécie deu os remotos avós Adão e Eva.

Mas, mesmo nesse período, não tolerou fanatismos. Antes os vergastou sem complacências. São mesmo as únicas páginas de crítica azêda que encontramos nas Pupilas e na Morgadinha.Os missionários são ali apreciados com a implacável justiça de um espírito elevado, são e justo.

Descrevendo as beatas de Ovar, de que, na nossa juventude, ainda conhecemos, por aquelas paragens, exemplares como os que se encontram fotografados nas Pupilas, escreve Júlio Denis:

«Era emfim um dêsses tipos de beata, comuns nas nossas aldeias: - mulheres cuja vida se

passa em devoções contínuas, em novenas e vias-sacras e em perene confissão: obra dos gordos missionários que deixam a outros o cuidado de desbravar a gentilidade das nossas possessões, para andar na tarefa mais cómoda de tolher o trabalho e a actividade na casa do lavrador.

«Imbuïndo o espírito das mulheres de preceitos de devoção absurda, afastam-nas do berço dos filhos, da cabeceira do marido enfermo, do lar doméstico, para as trazer ajoelhadas pelos confessionários e sacristias; com uma brava eloqüência, perigosa para quem não tiver o senso preciso para a achar ridícula, incutem-lhes falsas doutrinas, desmentidas e condenadas em cada página do Evangelho, tão severo sempre contra fariseus e hipócritas.

«Em uma localidade, não muito distante do Pôrto (1), ainda há pouco um dêsses apóstolos, que andam por aí reformando escandalosamente a moral dos povos, prègou do púlpito que a salvação de um homem casado era tão difícil como o aparecimento de um corvo branco.

«É triste e desconsolador o aspecto da terra onde esta praga farisáica tem feito os maiores estragos. A alegria do povo, êsse reflexo da alegria das mulheres, porque das mães se reflecte

(1) Ovar?

nos filhos, das esposas nos maridos, das raparigas nos amantes, desaparece pouco a pouco.» (1)

Na Morgadinha, as críticas não são menos acerbas nem menos repetidas. E tanto que acabam pelo castigo do Cancela, aplicado ao missionário que lhe roubou a afeição da filha:

A mão do Cancela caíu em parte sôbre o pescoço do padre, e com tal fôrça que êste foi constrangido a ajoelhar.

« —— Anda, meu impostor do inferno!

« E uma forte sacudidela o impeliu para diante e restituiu de novo à primeira posição. O chapéu rolou a alguns passos de distância.

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Anda, meu encomendador de almas!

«Nova sacudidela, seguida de iguais resultados; e os óculos seguiram o caminho do chapéu.

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<«<- Anda, meu caluniador de Deus! » (2).

Este final é o epílogo dos comentários do autor à obra dissolvente dêstes fanáticos, cuja acção êle sintetiza, mais uma vez, nesta frase:

(1) Júlio Denis, As Pupilas do sr. Reitor, ed. cit., pág. 236.

(2) Júlio Denis, A Morgadinha dos Canaviais, ed. cit., vol. II, pág. 75.

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