E dizemos da vida familiar porque, sob outros aspectos, ali a encontramos ainda. Carlos e Jenny, os dois irmãos queridos, recordavam, repetidas vezes, a saudade que lhes deixara a mãe que perderam quando ainda crianças, ao que se associava Mr. Richard: «Jenny, conhecendo por experiência as predilecções paternas, abriu a colecção dos Cantos populares de Russel e procurou uma poesia de Morris, a qual tanto o pai como o irmão ouviam sempre com piedoso recolhimento. «O motivo desta atenção estava sobretudo na letra, que parecia feita de propósito para avivar, em tôda esta família, saudades da vida passada. Foi a meia voz, mas com verdadeiro sentimento, que Jenny cantou essa poesia intitulada a Bíblia de minha mãe, cuja tradução é a seguinte: «Este livro é tudo quanto me resta dela! Ao vê-lo, sinto rebentarem-me irreprimíveis as lágrimas dos olhos; com os lábios trémulos, com a fronte turvada, aperto-o ao coração. E esta a árvore de família à sombra da qual já muitas gerações se têm abrigado. As mãos de minha mãe folhearam esta Bíblia; foi ela mesma que ma legou ao expirar. «<Ai, como me estão lembrando aqueles, cujos nomes me vêm de envolta com estas memórias! Tantos que, em tôrno do lar, costuma vam reunir-se após a oração da tarde, a conversar no que dizia êste livro, em um tom que me calava no íntimo do seio; há muito que êles estão com os mortos silenciosos; mas sinto-os viver ainda aqui. «Meu pai lia êste livro sagrado aos filhos, às filhas, à família tôda! Como era serêno o olhar de minha mãe ao curvar a cabeça para escutar a palavra de Deus! Aquela figura angélica! Ainda a estou a ver! Que memórias me ocorrem em tropel neste momento! - De novo parece reviver, dentro das paredes dêste quarto, aquele pequeno grupo. «Tu, ó Bíblia! és o mais seguro amigo do homem! «Eu tenho já experimentado a tua constância! Quando todos me traíam achei-te fiel; vi em ti um conselheiro, um guia! As minas da terra não possuem tesouro que me compre êste livro. Ensinando-me a maneira de viver, êle também me ensina como se deve morrer» (1). Ouviam a poesia Carlos e Mr. Richard com a comovida unção de quem divisava nos versos de Morris uma oração à memória da que fôra (1) Júlio Denis, Uma Familia inglesa, ed. cit., pág. 190. a Senhora da casa, a espôsa e a mãe queridas. É ainda a identificação das duas personagens Carlos e Júlio Denis. Ao lado também se reproduz a figura austera de seu pai, o dr. José Joaquim Gomes Coelho, na de Mr. Richard. As predilecções amorosas de Júlio Denis recaem, como dissemos, nos seus romances, em órfãs de mãe. E êsse um motivo de natural atractivo. Na Família inglesa escreve a Cecília esta frase: «Se crê que a memória de minha mãe é para mim de tantas adorações e saudades, como as que se apoderavam do coração de Cecília e lhe transluziam no rosto quando a vi ajoelhada no túmulo da sua, pela memória de minha mãe lho juro também. Que mais quere? Que mais exige?» Júlio Denis transpôs, como nenhum outro autor português e poucos estrangeiros, para a sua obra literária, tôda a sua sentimentalidade, de um grande e superior requinte, sem a saber disfarçar nem ter necessidade de a deformar. Êle dissecou, ousadamente, o seu complexo afectivo. Aos críticos que possam apreciar com menos bom humor esta orientação, responde o próprio Júlio Denis nos seguintes termos, que extraímos ainda da Família inglesa: «Não está em moda trazer o coração à vista. É costume tratar, como ridículas, tôdas as manifestações de sentimentos; consideram-se como pequenas fraquezas que, como milhares de outras, só se devem confiar à discreção das quatro paredes do nosso quarto» (1). Jenny, a companheira sentimental de Júlio Denis, a sua irmã e conselheira, não é um produto de fantasia. Existiu, viveu a seu lado, desempenhou através da sua vida um lugar de grande destaque na sua afectividade. É provável, mesmo, que, quando Júlio Denis tivesse os vinte anos do Carlos do romance, a sua influência fôsse mais manifesta ainda. Queremos referir-nos a sua prima e madrinha D. Rita de Cássia Pinto Coelho. As cartas que lhe dedica e a que atrás fizemos larga referência são a prova do que afirmamos. Viveu muito à sua sombra e entregue aos seus cuidados de madrinha, pois apenas os separava catorze anos de idade. Era, por isso, excessivamente nova para a poder considerar como uma segunda mãe e tinha anos a mais para poder pensar nela para sua noiva. Tomou-a, de facto, como irmá mais velha, carinhosa e boa. É a confidente das suas esperanças, dos receios in (1) Júlio Denis, Uma Familia inglesa, ed. cit., pág. 35. fundados, dos segredos do coração, semelhantes àqueles que Carlos confia a Jenny na Família inglesa e de alguns que transpiram das poucas cartas que lhe dirigiu e que chegaram até nós: «É para mim um prazer inexprimível receber cartas do Pôrto, escreve Júlio Denis sua madrinha sobretudo aquelas em que foi colaborador o coração e nas quais transparecem sôbre o papel as efusões da alma, sem as reservas ridículas, impostas por uma mal entendida gravidade. «Estas pequenas confidências que indiferentemente chamam futilidades, são entre pessoas que se estimam e compreendem, assuntos de agradáveis conversações. «Eu também sinto aspirações iguais às suas; também quisera por futuro a vida tranquila do campo e os afectos de uma família eleita pelo coração para satisfazer esta necessidade de viver por os outros e para os outros, que é um dos impulsos mais irresistíveis da natureza humana.» (1) Este tom de intimidade fraternal, que se sente (1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., tom. II, pág. 110. |