Imagens das páginas
PDF
ePub

do actor no teatro - apresentam modalidades fonéticas que as distinguem considerávelmente umas das outras.

No próprio uso corrente da nossa língua, cada um de nós emprega, segundo as circunstâncias, pronúncias diferentes, umas mais cantadas que outras, da mesma palavra falada.

Se eu proferir o nome Maria no meio de uma sequência narrativa, sem necessidade de o sublinhar especialmente, das três vogais que nêle existem e são os seus elementos sonoros, apenas o I será audível a mais de um metro ou dois de distância. O primeiro A terá de contentar-se com ser baçamente ciciado, e o último pode até sumir-se de todo, atropelado pela primeira sílaba da palavra seguinte.

Se, porêm, me for necessário avisar ou chamar uma pessoa daquele nome, que esteja algum tanto afastada, a palavra Maria será proferida com todas as suas três vogais muito explicadas, e até muito cantadas; e é mesmo quási certo que, para tornar aquele nome mais sonoro, lhe acrescentarei um O ou um E-uma das vogais mais sonoras da respectiva escala. Assim Maria será transformado em O'-MA-RI-A ou E'-MA-RI-A, e parecerá mais uma cantiga que uma palavra.

As preguntas que nós fazemos aos outros são mais cantadas do que faladas, porque assim nos

convêm para que sejam ouvidas e eficazmente respondidas. A lei do menor esforço domina, portanto, o uso prático de todas as línguas, levando-nos intintivamente a dar à nossa fala o quantum satis de sonoridade, e não mais do que isso.

Mas, aplicadas ao uso artístico, como instrumentos musicais, tôdas elas encontram em si mesmas a elasticidade necessária para se tornarem mais sonoras, relevando, prolongando, exagerando o elemento vocálico, e, pelo contrário, adoçando, atenuando, sacrificando estéticamente os ruídos consonânticos mais duros e mais desagradáveis.

Podemos, pois, dizer afoitamente que o português é uma língua musical, tão apta para o canto como as que mais o sejam, se alguma existe que o seja pouco, ou muito menos que outra qualquer. Desta última hipótese é que nos será lícito duvidar, desde que, livres de preconceitos, apliquemos ao estudo e discussão do fenómeno a observação natural e o raciocínio desempoeirado de snobismos, de snobismos, patriotismos imbecilidades repetidas e consagradas.

e

Uma destas imbecilidades é a que, repetida por muita gente, consagrou o italiano literário como um prodígio único no mundo: a língua cantável ou cantante por excelência, espécie de volapük ou de esperanto da música vocal.

Antes de prosseguirmos na análise ou na dissecação de semelhante preconceito, será útil ponderar as seguintes observações do insigne pianista e erudito musicógrafo português, sr. José Viana da Mota:

«Grande vantagem tiram os Inglêses e os Americanos da desvantagem de não terem companhias líricas permanentes: contratam artistas dos três grandes países produtores de óperas, da Itália, da França e da Alemanha, para cantarem o repertório de cada nação na língua em que as obras foram escritas, ouvindo assim cada obra na sua forma original.>>

«Seria óbvio repetir aqui quanto se tem dito a respeito da dificuldade de traduzir uma poesia para outra língua do que aquela em que o poeta a ideou, pois a sonoridade, o ritmo, o espírito, a construção, a sintaxe de cada língua formam um elemento indispensável e intraduzível da poesia, constituem mesmo a sua parte fundamental.>>

«A ideia de um poema está tão indissolúvelmente ligada ao idioma, que rigorosamente não há tradução de uma obra poética. Traduzir é alterar, como diz o batido rifão: «traduttore, traditore».

«Ora se isto se dá no domínio da literatura

pura, em grau muito mais intenso se verifica quando a palavra é aliada à música, porque então já não é só o ritmo, a sonoridade da língua que se altera, é ainda a declamação, a acentua ção que se corrompe. Imagine-se o que é o «Barbeiro de Sevilha» ou a «Carmen» cantada em alemão. Mas também o «Tristão» perde por ser cantado em italiano ou francês: perde a signifição filosófica e simbólica, inveterada no idioma alemão e que a música reproduz admirávelmente. Mas, mesmo entre idiomas de mais próximo parentesco, a trasplantação altera sempre o carácter: compare-se a «Manon» em francês e em italiano, ou o «Rigoleto» em italiano e em francês. «Quanto mais nacional é a música, mais intraduzível é o «libretto.>>

«Vieram-me à mente estas reflexões, ouvindo a «Aida» depois do «Tristão» e recordando-me da última vez que ouvi a «Aida», que foi em Berlim, com Caruso e a admirável Dostinn (que cantava em italiano as scenas com Radamés). A música de Verdi contêm implícitamente a lingua italiana, como a de Mozart; e os Alemães nem sabem quanto perdem em ouvir o «Figaro>> e o «D. João» em péssimas traduções alemãs. Uma obra vocal não se deve traduzir (1).»

(1) V. Diário de Notícias, Lisboa, 26 de fevereiro, 1920.

A conclusão que se tira destas autorizadas e sensatíssimas observações é que nenhuma língua, nem mesmo o prodigioso italiano, se avantaja ao português, por exemplo, para servir de veículo de interpretação ou transmissão de qualquer criação musical portuguesa - canção popular, lied literário ou ópera-de assunto, inspiração e composição nacional, nossa.

Mas, independentemente dêste caso particular, ¿poderá ainda ter-se em pé o preconceito de ser o italiano, mais que nenhuma outra língua dêste mundo onde há tantas, a rainha das línguas cantáveis e cantantes?

Não o creio, pelas seguintes razões:

Em primeiro lugar, não me parece fácil demonstrar objectivamente que o italiano literário seja língua mais vocálica, e portanto mais musical, do que, por exemplo, o francês, o espanhol e o português.

E, ainda que o fòsse, tal facto não me demoveria, pois insisto em que tôdas as línguas possuem bastante elasticidade fonética para se tornarem mais sonoras quando tal lhes convêm. As modulações e fioriture, em que tanto se comprazem os artistas do bel canto, não são proibidas a quem cante em chinês, búlgaro ou biscainho.

« AnteriorContinuar »