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o mesmo prazer e com mesma admiração, os livros firmados pelo pseudónimo de Júlio Denis. Êsses grupos de fisionomias, desenhados com uma verdade, com uma vida que ninguém em Portugal, que no estrangeiro poucos sabem dar às suas criações, constituiam umas simpáticas famílias que eu gosto de visitar com frequência, certo de encontrar sempre ali conversação agradável e suave entretenimento. Já sou amigo velho de João Semana e a Morgadinha dos Canaviais já não tem segredos para mim. Sempre que torno a abrir êste último livro, sinto de novo aquela saborosa impressão do conchêgo que o estouvado Henrique encontra em casa da tia Dorotea, quando se enfia, muito fatigado da viagem, na cama alta e maciça, com lençóis brancos de neve e trinta cobertores de papa, ouvindo, já sepultado em meio sono, a voz distante da criada velha e o som melancólico das gotas de chuva, caindo do beiral do telhado no parapeito da janela.

«É êste o condão dos grandes escritores. Há muitos livros que a gente lê, admira e guarda depois na estante; há pouquíssimos que nós fatiguemos com o repetidíssimo folhear das suas páginas amigas. ¿Mas quem não tem saudades da voz alegre e levemente mordaz de Diana Vernou, acordando os écos de uma noite fria e clara naquelas solidões de Higlands, que Frank Osbaldistone percorre, pensando em Rob Roy,

e rindo-se ainda da situação do bailio Jarvis no momento do combate?

«¿ Quem não tem saudades também daquela estouvada Clarinha e da risonha Madalena a ler aos aldeãos numa vereda verdejante do Minho, as cartas dos filhos que foram para o Brasil e a consolá-los quando as notícias são más?

«Pobre Júlio Denis! Pague-lhe Deus em séculos de etéreos júbilos as horas suaves que o seu meigo espírito nos proporcionou. Volteiem em tôrno do seu túmulo, anjos de brancas àsas, as doces figuras a que deu vida, e perfumem-lhe a lousa as modestas violetas, que são o símbolo do seu estilo, pelo casto colorido e pelo recatado perfume».

Estas enternecidas palavras do que foi um dos grandes pensadores e escritores da nossa terra, são dignas de ambos. Pinheiro Chagas, cuja obra está hoje um pouco esquecida, foi um dos mais opulentos estilistas da sua época. Em todos os seus artigos sôbre a obra de Júlio Denis, êle não regateia elogios ao valor e à orientação do grande romancista. Deviam ter sido bem sentidas as palavras que escreveu, ao saber da morte prematura do autor das Pupilas do sr. Reitor,

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Anos antes, dedicára êle no Arquivo Pitoresco uma crítica a êsse romance que é uma página da mais bela literatura. Evocando-a aqui,

queremos prestar homenagem à sua imparcialidade e à sua ampla visão do momento literário dessa época. Era logo em seguida à publicação das Pupilas.

Recortaremos apenas um pequeno trecho:

«Felizmente há também entre êsses escritores que entram agora na liça alguns espíritos vigorosos e sensatos que se não deixam seduzir pelas tentações do extravagante e que vão procurar à simplicidade nobre, à inspiração verdadeira e casta, à natureza, emfim, o segrêdo das obras primas, a mágica vara com que se doma a indiferença do público despertando no leitor mais rebelde a comoção inesperada. Um dêsses altos espíritos é o do romancista que escreveu, debaixo do pseudónimo de Júlio Denis, as Pupilas do sr. Reitor, um dos mais for-. mosos livros de que se deve ufanar a literatura portuguesa.

«Não julguem exagerado o elogio, com tôda a sinceridade o afirmo; conheço poucos romances nossos que se possam pôr a par dêste precioso livro, que nos vem do Pôrto, revelando-nos de súbito um dos talentos mais elevados da nossa pátria.

«¿Qual é então o grande predicado dêsse romance? ¿Qual é o dote principal que justifica o elogio? Ó! Deus meu! Um dote bem modesto, para o qual devem olhar com supremo

desdém os nossos Vítor Hugos embrionários... a simplicidade, o mesmo ténue encanto que é em Paulo e Virgínia o levissimo frouxel da sua juventude imortal. ¿Quais são as grandes molas que o sr. Júlio Denis põe em movimento para nos inspirar o supremo interêsse que nos cativa da primeira à última página do seu livro? Ó! Duas apenas, e bem triviais: a natureza e o coração humano. É tão pouco... pois

é tudo».

Não admira, por isso, que quem assim apreciou a primeira obra do desconhecido romancista recebesse, quatro anos volvidos, e depois de ler os dois outros romances que se lhe seguiram, a noticia da morte de Júlio Denis com a comovida consternação de quem về desaparecer um valor nacional e um novo orientador a dentro da literatura portuguesa. Dentre tôdas as referências que lêmos nos jornais e revistas da época, e muitas foram, nenhuma nos pareceu mais sincera nem mais sentida.

A Revolução de Setembro, de 15 de Setembro de 1871, publicou uma crónica de Alberto de Queirós que apresenta algum interêsse, porque, a propósito do falecimento do romancista, apresenta um esboço de crítica que merece não ser esquecido. Os romances de Júlio Denis eram já conhecidos de todo o país, as edições suce

diam-se, o entusiasmo propagava-se, o culto pelo escritor estabelecia-se por tôda a parte em tôrno da beleza das scenas bem portuguesas dos nossos costumes rurais. Por isso dizia Alberto. de Queirós:

«Não há ninguém em Portugal que não tenha lido os seus romances, que não tenha ido com êle respirar o perfume suave dos campos, admirar as belezas da natureza, conversar nos prados, debaixo dos grandes carvalhos, silenciosos e tristes.

«Porém entre tôdas as suas qualidades havia uma que lhe era peculiar, uma que, mais que as outras, tornava os seus romances simpáticos e cheios de atractivos, eram as paisagens. Gomes Coelho com a pena na mão realizava os prodígios que Goya e Cláudio Loreno realizavam com o pincel e com as côres. Os leitores não podem ter-se esquecido daquela adorável paisagem das Pupilas do sr. Reitor, em que Daniel e Margarida, ainda crianças, conversavam no campo, debaixo da sombra de um carvalho. O seu talento mágico dava às suas paisagens uma frescura e uma realidade que poucos romancistas entre nós têm conseguido dar».

E conclui, em tom romântico, que não destôa do sentimentalismo doloroso e melancólico que

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