Imagens das páginas
PDF
ePub

para dar expressão, vitalidade à paisagem: os seus campos de searas, os montes, as claras águas, os céus profundos, não são nos seus livros uma decoração à vida fortemente sentida: as suas mulheres romanescas, os seus galas violentos e ternos, as meigas figuras de velhos, até as suas caricaturas é que foram colocados assim para povoar, dar eco sonoro, movimento, calor, à paisagem e fazer destacar e recuar os fundos murmurosos das aldeias.

«Há nos seus livros tal descampado, tal eira branca batida do sol, tal parreira onde os gatos se espreguiçam, que tem mais drama, mais idea, mas acção que o romance das figuras vivas.

«Depois das Pupilas do sr. Reitor, os livros de J. Denis passaram de leve, entre as atenções transviadas.

«Terão o seu dia de justiça e de Amor, como aquelas aldeias que êle mesmo desenha escondidas no fundo dos vales sob o ramalhar dos castanheiros; os seus livros serão procurados como lugares repousados, de largos ares, onde os nervos se equilibram e se pacifica a paixão. Foi simples, foi inteligente, foi puro. Trabalhou, criou, morreu: mais feliz que nós tem o seu destino afirmado e para êle resolveu-se a questão. A terra transformadora tem o seu corpo extinto; e o seu espírito, vive, ensina, cria ainda, é imortal na memória dos homens : suum quique a cada um o que é seu!

«A morte assim não tem terrores: compreende-se e ama-se: ela de resto só assusta aqueles que não tendo colocado a sua alma na alma dos outros, morrem com o seu corpo.

«Emquanto êle habita, vivo, pura essência, no fundo suave dos seus livros, nós que amamos o seu espírito, continuamos êste rude caminho, nas palpitações da luta, vivendo a rude vida dêstes tempos. Ai! muitas vezes pousariamos a pena, porque os tempos são desconsolados; mas a Justiça, Beatriz imortal, ou pelo menos uma figura luminosa que nos parece tal, retempera-nos e dá-nos a mão».

Esta brilhante apreciação de Eça de Queirós -pois o estilo parece o seu e não o de Ramalho Ortigão, o seu companheiro das Farpas, donde a transcrevemos merece algumas referências que ficam para depois. São páginas de comovida saudade à memória dum seu companheiro nas letras e, em grande parte, na orientação artística que seguia.

Por agora, fiquemo-nos a reler a notícia do Jornal do Porto, em que se descrevem as homenagens que, na velha Igreja de Cedofeita, prestou a Gomes Coelho a população scientifica e literária do Pôrto:

«Pegaram às àsas do caixão seis dos antigos condiscípulos de Gomes Coelho, a quem êle

tinha na conta de seus mais caros amigos. Foram os srs.: Ernesto Pinto de Almeida, Augusto Luso da Silva, Eduardo Augusto Falcão, José Augusto da Silva, Miguel Teixeira Pinto e José de Macedo Araújo Júnior.

«A chave do caixão foi depositada nas mãos dum dos mais intimos do falecido, o irmão do grande poeta que escreveu a Visão do Resgate. (1).

No rosto do sr. Custódio Passos desenhava-se a dor do triste sacrificio que lhe impunha a amizade».

(1) Soares de Passos.

VIII

A FAMÍLIA DE JULIO DENIS

ECHADO o parêntese em que apresentámos aos leitores o médico dr. Gomes Coelho, falemos do romancista Júlio Denis. O pseudónimo vale hoje mais do que o nome, pois foi à sua sombra que se divulgou a obra do notável escritor. Será êle de ora-avante o empregado neste trabalho, que visa agora mais à apreciação do escritor do que à do professor e do médico.

Antes de prosseguirmos, relanceemos um rá pido olhar pelos que mais de perto o acompanharam na vida; falemos da sua família. Uma alma sensível como a sua devia mergulhar nos encantos do lar em que viveu e a que o prendiam os seus melhores afectos.

Sua mãe, D. Ana Potter Gomes Coelho, só

pôde dar-lhe carinhos durante a sua primeira infância, pois faleceu ainda êle não tinha cinco anos de idade. E que saudades a sua memória lhe não deixou na alma! (1) Acompanharam-no tôda a vida.

A orfandade é a nota constante de todos os seus romances, e especialmente daqueles em que êle próprio se retrata. Até as suas figuras de mulher, principalmente as mais elevadas em qualidades e virtudes morais, são, por sua vez, órfãs de mãe como êle: Jenny e Cecilia, na Familia inglesa; Margarida e Clara, nas Pupilas do sr. Reitor; Madalena, na Morgadinha dos Canaviais, etc.

[ocr errors]

E essa particularidade é sempre posta em destaque com mais ou menos intensidade. Não é apenas nas personagens em que se encarna que êsse sentimento dolorido da orfandade materna é pôsto em relêvo; é-o também naquelas que mais de perto admira. Como que teve a necessidade afectiva de o pôr constantemente ao serviço da sua saudade. Mais intensamente na Família inglesa, o seu primeiro romance, que devia ter começado a ser escrito aos 19 anos, e quando a recordação devia ser mais

(1) No primeiro capítulo do segundo volume - Júlio Denis intimo-procuraremos interpretar, esta superafectividade filial.

« AnteriorContinuar »