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tos que o fogo levou, mas que, mesmo existindo, não sei se ousariamos aproveitar. Foi melhor assim! Pode ficar uma dúvida, mas outros elementos mostram à saciedade que o Daniel do romance é o próprio Júlio Denis e que a Guida é D. Ana Simões que, com o padre Cura, seu padrinho, mestre de famílias, como nos informou sua filha, alcançara uma ilustração um pouco fora do vulgar no seu meio e no seu tempo. Foi sempre amiga de ler e de se instruir. Mesmo já velhinha, então muito dada a leituras religiosas, discutia com o dr. José de Almeida assuntos bíblicos e citava passagens inteiras dos seus autores predilectos.

Em Março de 1922, já então juntando elementos para êste trabalho, recebemos uma carta dêste nosso amigo, a anunciar-nos o facto que viemos a ouvir da própria filha da Guida do romance, e que merece ser aqui trasladada:

«Meu caro Egas Moniz

«Se desejas ver a prenda de namorado dada: por Daniel (Júlio Denis) a uma das Pupilas, sua namorada, vem aqui na quinta-feira depois do teu almoço. Vês aquela relíquia e ouves testemunhas comprovativas de que Júlio Denis aqui arquitectou e escreveu as suas Pupilas. Até há poucos anos a namorada de Daniel (Jú

lio Denis) conservou o retrato e umas cartas dêste como uma coisa íntima. Ao morrer pediu à filha, que ainda vive, que queimasse aquelas cartas e inutilizasse aquele retrato! Não queria que isto fôsse divulgado! Eram coisas do coração antes de casar; e, assim, com ela deviam desaparecer. Tudo, na verdade, desapareceu, menos uma prenda que estava junta!

seu

«Essa «Pupila» tratou-me como se eu fôsse seu filho. Como teria evitado o desaparecimento daquelas jóias se me revelasse o que tão no íntimo pudor de mulher guardou até morrer, viúva e velhinha!»

O fogo purificador levou para sempre um pouco daquela alma de rapaz que sabia semear afeições, sem lhes dar vulto, mas que ficavam, por vezes, vincadas para sempre nas almas delicadas em que floriram.

Foi o que sucedeu com as que nasceram na Margarida do romance, e tanto que atravessou a sua existência ligada às palavras que êle lhe dissera e, por certo e mais ainda aos lindos dizeres das cartas que lhe dirigiu e que guardou, a vida inteira, em sítio recatado, que ninguém ousou devassar. Nem as filhas souberam nunca das recordações que, pouco antes de morrer, entregou ao esquecimento da fogueira!

E de notar uma coincidência interessante: Júlio Denis figura a pequena Guida do idílio campestre com Daniel, prêsa, através de todo o romance, às palavras do discípulo endiabrado que fugia às aulas de latim do sr. Reitor para estudar com a interessante zagala as «singelas e monótonas melopeias das xácaras populares.»

Essa primeira scena tirou-a Júlio Denis de reminiscências passadas ou copiou-a de qualquer idílio infantil que presenciou, servindo-se, porventura, do scenário daquela região.

Na realidade, Júlio Denis conseguiu impressionar D. Ana Simões tão profundamente que nunca mais o esqueceu através da sua vida. ¿ Teria tido influência sôbre ela a nota dominante do romance, a constância amorosa de Margarida, para avigorar a recordação que a acompanhou à hora derradeira ?

Não é fácil emitir uma opinião segura. O que sabemos é que Júlio Denis deixou indelèvelmente gravada a sua passagem por essa alma delicada de rapariga aldea.

Quando enviuvou, contou-nos sua filha D. Emília, disse-lhe ela, a chorar:

«Era sina minha o enviu ar! Três vezes me falaram em casamento: Júlio Denis, Manuel Bernardino de Oliveira Gomes e teu pai. Todos a morte levou! Seja feita a vontade de Deus!

II

O ESTUDANTE

NTES de entrarmos pròpriamente no estudo das personagens dos romances de Júlio Denis, procuraremos estudar o seu autor, servindo-nos, para isso, dos seus escritos e dos seus comentadores.

Só depois disso poderemos estabelecer paralelos e fazer confrontos.

Sem essa base não nos seria possível tirar ilações dignas de crédito.

Falemos primeiro do médico.

Júlio Denis foi o pseudónimo com que ficou sendo conhecido, através dos seus romances, o dr. Joaquim Guilherme Gomes Coelho, que nasceu no Pôrto, na rua do Reguinho, em 14 de Novembro de 1839. Foi baptizado na Igreja de S. Nicolau, da mesma cidade, em 18 do mesmo mês e ano.

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Era filho do dr. José Joaquim Gomes Coelho, natural de Ovar, médico-cirurgião no Pôrto, e de D. Ana Constança Potter, da mesma cidade.

Foram seus avós paternos José Gomes Coelho, e D. Rosa Rodrigues, naturais de Ovar, e maternos António Pereira Lopes, natural do Pôrto e empregado da Companhia Geral do Alto Douro, e D. Maria Potter, também nascida na mesma cidade, mas filha de Tomás Potter, súbdito inglês, natural de Londres, e de D. Maria Potter, irlandesa, ambos católicos.

Freqüentou as primeiras letras com António Ventura Lopes, em Miragaia. Era seu companheiro de trabalhos escolares um seu irmão mais velho, que, mais tarde, foi aluno distinto de matemática na Academia Politécnica do Pôrto, onde concluiu o curso de engenharia em 1855, com prémio em algumas cadeiras. A morte pela tuberculose veio surpreendê-lo dois meses depois de completar a sua carreira scien. tífica (1).

(1) Para a sua campa escreveu Soares de Passos o seguinte epitafio:

Vinte anos? Ai! bem cedo arrebatado
O guardaste no seio, ó campa fria!
Flor passageira, sucumbiu ao fado,
E seus perfumes exalou num dia!

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