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tone, do irrequieto rapaz que retratou a quadra febril e movimentada da sua existência. De todo lhe esquecera o primeiro rebate mórbido: a hemoptise que o feriu aos 17 anos!

Já no ano seguinte, em 1861, ao terminar os estudos médicos, o seu estado de espírito é um pouco diferente. Júlio Denis, concluido o curso, imediatamente se lançou ao extenuante trabalho da sua dissertação inaugural, que não tardou a defender. Devia sentir-se do esforço dado aos trabalhos scientíficos e a sua energia moral devia sofrer a depressão de uma fadiga excessiva. Há na carta-poesia dêsse ano (1) para seu primo um certo desalento:

«Os anos são marcos na senda da vida,
Nos quais o viajante costuma parar,
E os olhos volvendo na estrada corrida,
As scenas passadas lhe apraz recordar.

«Suspende um momento teus passos, suspende,
Na santa romagem que cumpres aí;

E além, ao passado, teus olhos estende...
Além, o passado, contempla-o daqui.

(1) Esta poesia está publicada, com o titulo Hino da amizade, nas Poesias, ed. cit, pág. 65. É a única, da colecção, até aqui conhecida do público.

"O pára! Paremos, que as scenas d'outr'ora,
Tão ricas de encantos, são minhas também ;
Pois juntos nos vimos da vida na aurora,
E juntos passamos os anos além!

«Que tempo! Que scenas passamos unidos!
Prazeres, trabalhos, leituras comuns...
Ai, quantas saudades dos tempos volvidos
Me restam no peito! Remorsos... nenhuns!

«Aquela nobre alma, já perto da morte,
Que negra adejava de si ao redor,

Mais nobre por isso, mais bela, mais forte,
P'ra as lutas da vida nos dava o ardor.»>

Júlio Denis refere-se nestas passagens a um dos seus irmãos, por certo ao José Joaquim. A alusão é, em outras estâncias, mais precisa. Depois, dirigindo-se a seu primo, continua:

«Por outro caminho seguiste... Contudo,
De tempos a tempos, cingimos as mãos.
Fadigas da vida, fadigas do estudo,
Não fêz esquecer-nos o nome de irmãos.

«Mil vezes, à sombra de denso arvoredo,
Falávamos ambos do nosso porvir,
Dos tempos passados, do vago segrêdo
Que dentro do peito tentava florir.

«No fim da carreira que ansiado trilhava,
Depois de mil lides e dores me encontrei;
Mas antes, de novo, tua mão estreitava,
E à beira dum túmulo, contigo chorei.»

E segue neste tom doloroso falando do passado e do futuro, para que lhe escasseiam energias. Júlio Dinis refere-se nestas quadras à sua formatura em medicina e chama José Joaquim Pinto Coelho a preencher a lacuna deixada na sua afectividade pela perda do irmão querido. E substituiu-o, de facto.

Anos depois, morreu nos seus braços. O final da carta é uma reacção a tôdas as ideas tristes que, nesse momento, o perseguem. Reacção froixa como a dum candil que ainda dá luz, mas já não alumia. Pesa sôbre êle a intoxicação derivada de uma fadiga violenta; e a despedida à vida descuidosa de estudante agita-o nas incertezas do futuro. Quem as não sentiu ao deixar um curso à sombra do qual quere fazer a vida! É a hora melancólica das indecisões!

Em 1862 mantém-se, embora atenuado, o mesmo estado de espírito. A sua carta, um ano volvido, é como que a continuação da anterior:

«Venho uma vez ainda, movido de ansiedade
Dos teus, às alegrias, meus júbilos unir;
Queimar débil insenso nas aras da amizade,
Lembrar-me do passado, falar-te do porvir.

«Lembrar-me do passado, desviando a escura tela
Que as scenas dessas eras aos olhos nos cerrou...
Falar-te do futuro, mostrando-te essa estrela
Que para a juventude sempre nos céus radiou...»

E, embora menos pessimista, volta a insistir nas tristezas do passado a que ambos andam ligados, para, em seguida, soerguer a alma em aspirações varonis:

«Parar, onde a planície se espraia, vasta, imensa ?
E a perspectiva se orna de flores e de luz ?
Parar, pendida a fronte, sem ânimo, sem crença,
Vergado sob o pêso de imaginária cruz?

alsto nos nossos anos, isto na nossa idade, Tão cheia de futuro, de alento e de fé!

Ó não! P'ra nós a esp'rança; deixemos a saudade ! Deixemos a flor murcha que outra em botão já é !

Saudemos o futuro, como a risonha aurora
Que tinge o alto dos montes de purpurina côr!
Saudemos o futuro à voz consoladora,

Que nos fale em segredo, duma época melhor!»>

Mas esta aspiração amortece de novo. O seu espírito não arranca com sinceridade nestas instigações à luta pela vida. É o raciocínio que as dita, não é o coração que as sente. E, involuntàriamente talvez, volta a cair nas evocações dolorosas que lhe andam dentro da sua afectividade, nesse momento profundamente ferida.

Morrera nesse ano uma irmã de Pinto Coe

lho (1). E o seu estro encaminha-se para a recordar. É uma «cândida aparição» que lhe surge, vinda do céu:

«Da lira pelas cordas correndo as mãos nevadas
Tira sentidas notas duma imortal canção...
Nem das harpas eólias, nos olmos penduradas,
As extrái tão sonoras, da noite, a viração...

«Não são da terra as notas da música maviosa
Que escuto, não; são ecos de música no céu...
Co'a citara dos anjos em nuvens côr de rosa
Esta visão celeste junto de nós desceu.

«Cantando, pouco a pouco, seu rosto se ilumina..
Nos lábios tudo é risos; é tudo vida o olhar...
Como, na madrugada, se despe de nebrina
A risonha paisagem que o sol vem animar.

«Falou na paz dos justos, falou na recompensa
Que espera os virtuosos na celestial mansão...
Para os céus apontando, disse inspirada:-Crença!-
Abandonando a terra, disse saudosa:-Irmão!

--»

Não pode furtar-se a dar asas ao pensamento em melancólicos devaneios!

(1) D. Ernesta Guilhermina, que também morreu tuberculosa. Júlio Denis dá-o a entender, mais abaixo, no verso que termina:

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