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corresponde mais ou menos a um tipo especial de perturbações psíquicas, sem tergiversações nem desvios. É o que se observa. E note-se que nesse tempo ainda se não tinha dado à classificação dos delírios a atenção que ùltimamente lhe deram os psiquiatras.

Para terminarmos as considerações que vimos fazendo sôbre as notas médicas deixadas pelo romancista na sua obra, estudo sem pretensões a ser exaustivo, antes aligeirado na forma, queremos recordar uma circunstância. que se dá nesta mesma passagem do romance.

Carlos Whitestone é, na Familia inglesa, a representação flagrante de Júlio Denis dos vinte anos. No segundo volume dêste trabalho o demonstraremos.

Mas Carlos, no romance, é apenas um estroina que há de vir a ser comerciante e sucessor de seu pai, o austero Mr. Richard.

Ora nesta passagem Carlos faz de médico, toma o pulso de Kate:

« Carlos, pousando-lhe a mão no pulso, mal o pode já perceber...

Por outro lado, Carlos, que tinha resistido aos pedidos do pai e, mais do que isso, às lágrimas da irmã, negando-se a acompanhá-los na visita a Mr. Smithfield e a sua filha, preso da idea de ir passar umas horas em companhia de

Cecília, a máxima preocupação da sua vida afectiva, nesse momento, não teve ânimo - diz o romancista-para resistir à compaixão por uma pobre mulher, velha, demente e moribunda.

Em nosso entender, não foi apenas a bondade natural do seu carácter que o determinou a ficar. Carlos ficou sobretudo no cumprimento dum dever. É que Carlos é Júlio Denis e êste, descrevendo-se, não afastou de si a qualidade de médico, de médico novo, saído talvez nesse mesmo ano da Escola.

Repugnava inconscientemente à sua dignidade profissional, presa estruturalmente à sua personalidade, que Carlos, que o representava, abandonasse uma doente em perigo de vida, sem outra assistência clínica. Ficou, como lhe cumpria, a sossegar a velha ama de seu pai e... a observar-lhe o pulso.

O dever e a bondade venceram o coração.

Só a bondade não sei se conseguiria fazer esquecer Cecília, a sua namorada dos vinte anos, no momento da exaltação mais viva e mais intensa dessa paixão!

XVIII

JÚLIO DENIS E A PSICOANÁLISE

P

ARA finalizar, deixámos para êste capítulo o estudo de duas interessantes passagens da Família inglesa, que merecem considerações especiais. A primeira é a descrição e um pouco a interpretação de um sonho de Cecília.

Hoje, que Freud veio chamar a atenção dos médicos e psicólogos para a interpretação dos sonhos como elemento precioso nas investigações psicoanalíticas, essa descrição merece ser convenientemente apreciada:

«Cecília imaginou»

diz Júlio Denis - «que ía num barco levado pela corrente impetuosa do rio em direcção da barra. O perigo era certo e contudo o barco ia cheio de máscaras que dansavam. Cecília gritava, mas ela própria não

ouvia a sua voz. O barqueiro era o sr. Fortunato (1) e, coisa singular, ao mesmo tempo que remava, ia tomando chá. Depois vinha Carlos com um cavalo pela rédea, mas o que mais a surpreendia era que vinha pelo mar. Carlos queria salvá-la, tirando-a do barco, mas as outras máscaras e o sr. Fortunato não deixavam. Porém o sr. Fortunato já não era o sr. Fortunato, mas sim uma das personagens do romance que tanto a impressionára; e o mar também já não era bem o mar, porque tinha camarotes em volta. E contudo o perigo persistia, sem saber bem como ou em quê e agora era ela que fugia de Carlos.

«Finalmente o sonho era um enrêdo complicado, tendo por elementos os diversos acontecimentos e assuntos que mais tinham preocupado Cecília naquele dia, mas tudo em desordem.» (2)

Esta descrição, que terá passado desapercebida à maioria dos leitores como episódio de pouca monta, é de-veras interessante.

Não há muito que um médico e psicólogo de Viena, o professor Sigmond Freud, lançou

(1) O sr. Fortunato era o companheiro do pai de Cecilia. Tôdas as noites ia tomar chá a casa de Manuel Quintino.

(2) Júlio Denis, Uma Familia inglesa, ed. cit., pág. 174.

primeiramente no meio médico, donde alastrou para o campo filosófico e até literário e social, as bases de um novo processo de análise psíquica que, a princípio, era apenas destinado a conseguir uma terapêutica das neuroses. Não pretendemos fazer aqui longas considerações sôbre a teoria, e menos ainda criticá-la. Em 1915, abordámos o assunto, cremos que pela primeira vez no nosso meio, num certo número de lições (1) sôbre o novo processo terapêutico e as conclusões, por certo exageradas, do mestre vienês sôbre a etiologia das neuroses que, em seu entender, derivam sempre de perturbações na evolução da sexualidade.

Nas doutrinas de Freud há princípios que são hoje universalmente admitidos e a que o ilustre psicólogo deu um valor que até aí se lhes não tinha dado. Entre êles avulta o da noção do inconsciente. A nossa vida é dirigida mais pelos fenómenos passados a dentro da esfera da inconsciência, do que pelos chamados actos conscientes.

Aquilo de que não nos apercebemos no campo da mentalidade manda mais em nós do que o que vem à superficie do nosso conhecimento.

(1) Foi publicada a primeira dessas lições, que corre impressa. Egas Moniz - Lição do curso de Neurologia -As bases da Psicoanálise, Lisboa, 1915 (Separata da Medicina Contemporânea).

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