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LXXXIV

E já no porto da inclyta Ulyssea,
C'hum alvoroço nobre, e c'hum desejo
(Onde o licor mistura, e branca area
Co'o salgado Neptuno o doce Tejo)
As naos prestes estão; e não refrea
Temor nenhum o juvenil despejo,
Porque a gente maritima, e a de Marte
Estão para seguir-me a toda parte.

LXXXV

Pelas praias vestidos os soldados
De varias cores vem, e varias artes;
E não menos de esforço apparelhados
Para buscar do mundo novas partes.
Nas fortes naos os ventos socegados
Ondeam os aeries estandartes;

Elles promettem, vendo os mares largos. De ser no Olympo estrellas, como a de Argos.

LXXXVI

Despois de apparelhados desta sorte,
De quanto tal viagem pede e manda,
Apparelhámos a alma para a morte,
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
Para o summo Poder, que a etherea corte
Sustenta só co'a vista veneranda,
Implorámos favor que nos guiasse,
E que nossos começos aspirasse.

L

LXXXVII

Partimo-nos assi do sancto templo,
Que nas praias do mar está assentado,
Que o nome tem da terra para exemplɔ,
Donde Deos foi em carne ao mundo dado.
Certelicc-te, o Rei, que se contemplo
Como fui destas praias apartado,
Cheio dentro de duvida, e receio,
Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

LXXXVIII

A gente da cidade aquelle dia,
Huns por amigos, outros por parentes,
Outros por ver somente, concorria,
Saudosos na vista, e descontentes:
E nós co'a virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes

Em procissão solemne a Deos orando,
Para os bateis viemos caminhando.

LXXXIX

Em tão longo caminho, e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavani;
As mulheres c'hum choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam:
Mais, espesas, irmãas, que o temeroso
Amor mais desconfia, accrescentavam
A desesperação, e frio medo

De á nos não tornar a vêr tão cedo.

XC

Qual vai dizendo: O' filho, a quem eu tinha
Só para refrigerio, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará penoso, e amaro;
Porque me deixas misera, e mesquinha?
Porque de mim te vás, ó filho charo,
A fazer o funereo enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento!

XCI

Qual em cabello: O' doce e amado esposo,
Sem quem não quiz amor que viver possa;
Porque a aventurar ao mar iroşo

Essa vida, que he minha, e não he vossa?
Como por hum caminho duvidoso
Vos esquece a affeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?

XCII

Nestas e outras palavras que diziam
De amor, e de piedosa humanidade,
Os velhos, e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço poem a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quasi movidos de alta piedade:
A branca area as lagrimas banhavam,
Que em multidão com ellas se igualavam.

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Nós outros sem a vista alevantarmos,
Nem a mãi, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarinos
Do proposito firme começado:

Determinei de assi nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado,

Que postoque he de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
XCIV

Mas hum velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, mencando
Tres vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada hum pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'hum saber só d'experiencias feito,
Taes palavras tirou do experto peito:

CXV

Oh gloria de mandar! Oh vãa cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos fama!
Oh fraudulento gosto, que se atiça

C'huma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho, e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nelles exprimentas!

XCVI

Dara inquietação d'alma, e da vida,
Fonte de desamparos, e adulterios,
Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinos, e de imperios:
Chamam-te illustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vituperios:
Chamam-te fama, e gloria soberana,
Nomes com que se o povo nescio engana!

XCVII

A que novos desastres determinas
De levar estes reinos, e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo d'algum nome preeminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas The prometterás? Que historias?
Que triumphos, que palmas, que victorias ?.

XCVIII

Mas ó tu geração daquelle insano,
Cujo peccado, e desobediencia,
Não somente do reino soberano

Te poz neste desterro, e triste ausencia:
Mas inda d'outro estado mais que humano,"
Da quieta, e da simples innocencia,

Idade d'ouro, tanto te priveu,

Que na de ferro, e d'armas te deitou:

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