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LXIX

Tem a lei d'hum Propheta, que gerado
Foi sem fazer na carne detrimento
Da Mai; tal que por bafo está approvado.
Do Deos, que tem do mundo o regimento,
O que entre meus antiguos he vulgado
Delles, he que o valor sanguinolento
Das armas no seu braço resplandece,
O que em nossos passados se parece;

LXX

Porque elles, com virtude sobrehumana,
Os deitaram dos campos abundoscs
Do rico Tejo, e fresca Guadiana,
Com feitos memoraveis, e famosos:
E não contentes inda, na Africana
Parte, cortando os mares procelloso3,
Nos não querem deixar viver seguros,
Tomando-nos cidades, e altos muros.

LXXI

Não menos tem mostrado esforço, e manha
Em quaesquer outras guerras que aconteçam,
Ou dos gentes belligeras de Hespanha,
Ou là d'alguns que do l'yrene deçam:
Assi que nunca em fim com lança estranha
Se tem, que por vencidos se conheçam;
Nem se sabe inda, não, te aflirmo e assello,
Para estes Annibaes nenhum Marcello.

LXXII

E se esta informação não for inteira
Tanto quanto convem, delles pretende
Informar-te, que gente verdadeira,
A que mais falsidade enoja, e offende:
Vai ver-lhe a frola, as armas, e a maneira
Do fundido metal, que tudo rende;
E folgarás de veres a policia
Portugueza na paz, e na milicia.

LXXIII

Já com desejos o Idolatra ardia
De ver isto que Mouro lhe contava:
Manda esquipar bateis, que ir ver queria
Os lenhos em que o Gama navegava:
Ambos partem da praia a quem seguia
A Naire geração, que o mar coalhava;
A' capitaina sobem forte e bella,
Onde Paulo os recebe a bordo della.

LXXIV

Purpureos são os toldos, e as bandeiras
Do rico fio são, que o bicho gera;
Nellas estão pintadas as guerreiras
Obras, que o forte braço já fizera:
Batalhas tem campaes, aventureiras,
Desafios crueis, pintura fera,

Que tanto que ao Gentio se apresenta,
Attento nella os olhos apascenta.

LXXV

Pelo que vê pergunta: mas o Gama
Lhe pedia primeiro que se assente,
E que aquelle deleite que tanto ama
A seita Epicurea experimente.
Dos espumantes vasos se derrama
O licor, que Noé mostrara á gente:
Mas comer o Gentio não pretende,
Que a seita que seguia lho defende.

LXXVI

A trombeta, que em paz no pensamento
Imagem faz de guerra, rompe os ares:
Co'o fogo o diabolico instrumento
Se faz ouvir no fundo lá dos mares.
Tudo o Gentio nota: mas o intento
Mostrava sempre ter nos singulares
Feitos dos homens, que em retrato breve
A muda poesia alli descreve.

LXXVII

Alça-se em pé, com elle o Gama junto,
Coelho de outra parte, e o Mauritano:
Os olhos poem no bellico transunto
De hum velho branco; aspeito venerando,
Cujo nome não pode ser defunto,

Em quanto houver no mundo trato humano:
No trajo a Grega usança está perfeita,
llum ramo por insignia na direita.

LXXVIII

Hum ramo na mão tinha .. Mas ó cego
Eu, que commetto insano, e temerario,
Sem vós, Nymphas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão arduo, longo, e vario!
Vosso favor invoco, que navego

Por alto mar com vento tão contrario,
Que se não me ajudais, hei grande medo,
Que o meu fraco batel se alague cedo.

LXXIX

Olhai que ha tanto tempo, que cantando
O vosso Tejo, e os vossos Lusitanos,
A fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo, e novos danos:
Agora o mar, agora exprimentando
Os perigos Mavorcios inhumanos:
Qual Canace, que á morte se condena,
N'huma mão sempre a espada, e n'outra a
(penna.

LXXX

Agora com pobreza aborrecida,
Por hospicios alheios degradado;
Agora da esperança ja adquirida,
De novo mais que nunca derribado:
Agora ás costas escapando a vida,
Que d'hum fio pendia tão delgado,
Que não menos milagre foi salvar-se,
Que para o Rei Judaico accrescentar-se.

LXXXI

E ainda, Nymphas miuhas, não bastava
Que tamanhas miserias me cercassem
Senão que aquelles que eu cantando andava,
Tal premio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capellas de louro que me hourassem,
Trabalhos Dunca usados me inventaram
Com que em tão duro estado me deitaram.

LXXXII

Vede, Nymphas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,

Que assim sabem prezar com taes favores
A quem os fez cantando gloriosos!
Que exemplos a futuros escriptores,
Para espertar engenhos curiosos,
Para porém as cousas em memoria,
Que merecerem ter eterna gloria!

LXXXIII

Pois logo em tantos males he forçado,
Que só vesso favor me não falleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça:
Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado,
Que não no empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subide,
Sob pena de não ser agradecido.

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