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me sinto entristecer sempre que a ouço cantar, a esta mulher que não conheço, que nem sequer ainda vi? Que homem sou eu, tão singular! Jesus, Jesus! Será isto uma loucura?

«Tudo na praia recaíra em profundo silêncio. Pedro, com os olhos postos na janela obscura, conservava-se imóvel, como se temesse desvanecer uma visão deliciosa ou quisesse recolher as últimas e imperceptíveis vibrações sonoras que um sentido superiormente organizado lhe permitia ainda apreciar.

«Principiava a tingir-se o horizonte dos rubores da madrugada e Pedro em vão se esforçava por se arrancar dali. Prendia-o uma esperança; a de entrever, por instantes que fôsse, a mulher por quem concebera tão violenta paixão; instava com êle, para partir, aquela espécie de pudor do coração, com que de tôdas as vistas procuramos esconder os menores vestígios dum primeiro amor, tanto mais ardentemente quanto maior é a sua candura e quanto mais digno êle é da nobreza de sentimentos próprios da juventude.»

Conta o romancista, no seguimento desta passagem, que era já alta manhã quando Pedro voltou ao Furadouro.

Notaram a sua falta na companha, que à hora do costume se fizera ao mar e, acrescenta Júlio Denis que «segundo a lei, fôra

multado na parte do quinhão que lhe tocava» (1).

João Cabaça é que estava apreensivo. Não The fugia o pensamento do mau agoiro da sereia junto à praia, pois para êle era de fé que a sua voz andava a enfeitiçar o infeliz Pedro. E preguntava a si mesmo qual seria o destino do companheiro, que êle julgava, mais do que nunca, em risco de se perder. Foi por isso um grande alívio para a sua alma generosa e boa o ver Pedro aproximar-se. Não lhe faltaram recriminações, palavras e conselhos de amigo, cheios de amizade e de convicção.

Gente do mar! Dentro dos seus arcabouços de aço vive a mais elevada sentimentalidade da nossa raça! Como Júlio Denis a soube surpreender nas páginas que vimos trasladando e que dormiram mais de sessenta anos no recato sagrado de um escrínio de família!

(1) Ao menos nesse tempo as companhas eram organizadas em forma de sociedades com participação de lucros por todos os associados. A-pesar disso, diga-se de passagem, os péscadores nem sempre auferiam vantagens remuneradoras.

XI

«O CANTO DA SEREIA»

III

S leitores de-certo me agradecerão que eu siga ainda neste capítulo a ocupar-me do estranho romancezinho de Júlio Denis. Ainda mais algu mas transcrições que, não podendo ser longas, serão, contudo, suficientes para deixarem a impressão duma nova faceta do talento do autor das Pupilas.

Por outro lado, nenhum outro romance, como êste, o prende à região vareira; pois, ao contrário do que sucede em tôdas as suas outras produções, não há aqui nem disfarces de scenário, nem sequer paragens inominadas. Júlio Denis conheceu de perto tôda a formosíssima costa que se estende ao sul e, sobretudo, ao norte do Furadouro. Ali conviveu com vários

pescadores. Na atitude sonhadora de alguns . dêsses rudes homens do mar êle divisou a figura de Pedro, tôda sentimento e fantasia, tôda ansiedade e tortura.

Os mais insignificantes pormenores da região são nesta última parte referidos. Dir-se há que êle próprio tentou um dia a fatigante viagem até Espinho!

«Na noite dêsse dia reproduziu-se para Pedro a aparição do mar.

«Foi pela altura dos palheiros, então ainda desertos, de Maceda e Cortegaça (1), que êle a veio encontrar.

«A noite estava tranqüila, o mar serêno. A claridade da lua, apenas velada por um transparente cendal de tenuíssima nebrina, permitiu distinguir o vulto da cantora que, recostada à prôa, entoava uma música cheia de entusiasmo e energia, uma espécie de hino patriótico, a cujas palavras ela sabia comunicar todo o fervor do seu ânimo exaltado. Ainda desta vez foi contagioso para o impressionável moço o sentimento que em todo aquele canto se reflectia.

«Assim como na véspera a melancolia do canto lhe havia feito assomar aos olhos lágri

(1) Costa do concelho de Ovar, ao norte de Furadouro.

mas incompreensíveis, agora a energia, o ardor com que as palavras pátria e liberdade eram pronunciadas pela cantora, comunicaram-se ao enlevado mancebo, que experimentava um dêsses voluptuosos estremecimentos e sensações indefiníveis que ressentimos nos movimentos de entusiasmo, que nos transformam, que nos sublimam, elevando-nos acima de nós mesmos e fazendo-nos capazes de superiores concepções e empenhos.

«Ele caminhava na praia como atraído por aquela harmonia sedutora. Ela fugia-lhe já. O barco movia-se em direcção ao norte. Pedro seguia-o, seguia-o com uma velocidade que só The podia vir da alucinação que o dominava. Já mal se percebia o canto, já quási se tornara indistinto o barco donde aquela música partia e Pedro, com o olhar fixo naquele ponto e com os ouvidos atentos à desvanecida harmonia, caminhava ainda, e caminhou sempre, até súbito obstáculo lhe tolheu os passos.

que um

«Estava defronte da Barrinha. «Quem viajasse há anos por esta parte da Província da Beira (1), deve conhecer, por tradição, senão por experiência, o ponto do litoral que recebeu êste nome e onde tantos episódios,

(1) É mais Beira do que Douro a região; contudo é à província do Douro que pertence Ovar.

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