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cardo Jorge faz salientar, afasta-se em muitas outras particularidades. O médico francês é um reformador social que consegue transformar a região onde desenvolveu a sua actividade clinica. É amigo dos pobres à maneira de João Semana: «Je voulus devenir l'ami des pauvres, sans attendre d'eux la moindre récompense» (1), dizia Benassis a Genestas. Mas o médico francès consegue sanear uma povoação, lançar as bases de novos processos industriais, agrícolas e comerciais, fazer uma obra que Balzac apresenta como um modêlo na sua orientação reformadora.

João Semana é simplesmente o velho cirurgião de Ovar. Nunca teve tais aspirações nem, mesmo que as tivesse, carecia dessas luzes a rica e próspera região onde exercia a clínica. Trata de doentes, sacrifica-se pelos pobres, conta anedotas e com isso se contenta. Quem o conheceu descobriu-o logo no romance de Júlio Denis. Era tal qual. Basta rememorar um episódio que o padre Manuel Lírio conta no Almanaque de Ovar:

«Um dia, já nos últimos anos da sua vida, viajava êle de Espinho para Ovar, com outros

(1) H. de Balzac, Le Médicin de Campagne, Paris, 1865, pág. 43.

seus patrícios. Na mesma carruagem do combóio seguiam alguns académicos. O bom do velho doutor Silveira entabolou conversa com os rapazes e, homem bondoso e franco, denunciou logo a sua feição alegre, o seu feitio de espírito sentencioso e anedótico. Alturas tantas, um dos académicos volta-se para os conterrâneos do velho cirurgião e diz, em tom moderado, pouco mais ou menos isto:

«-Palavra que se eu não soubesse que João Semana é uma criação fantástica de Júlio Denis, havia de dizer que estava aqui o autêntico João Semana!

«<-Fale mais baixo!»-observaram-lhe aqueles. «Não vá êle ouvir! Efectivamente êste é o João Semana do romance.

que

é

«Isto é autêntico e mostra bem quanto o romancista se esmerou em ser fiel e verdadeiro.»

Estamos certos que Júlio Denis leu o romance de Balzac. É até curiosa a aproximação de uma passagem do Médecin de Campagne de uma outra da sua dissertação inaugural.

O médico dr. Bénassis conseguiu salvar a população em que fazia clínica e onde encontrou uma dúzia de cretinos, transportando-os para os arredores de Aiguebelle, na Saboia. O médico atribui o cretinismo à situação da aldeia num vale fundo, sem ar, e privada do

benefício do sol, que apenas «alumiava o alto das montanhas».

Pois Júlio Denis, firmando-se na opinião de Chatin, atribui, na sua tese, o cretinismo à falta do iodo na atmosfera (1). É, talvez, mera coincidência; mas é crível que a leitura do Médecin de Campagne o levasse a profundar o assunto, acabando por se decidir pela opinião que lhe pareceu mais documentada.

Pode também muito bem ser que, do romance de Balzac, tirasse a idea de estudar o curioso tipo do cirurgião vareiro; mas trasladou-o como o viu. Fêz uma cópia fiel. Bénassis não deve ter influenciado o seu espírito na apresentação. João José da Silveira está no romance sem sombra de disfarce.

No que o romance balzaqueano pode ter inspirado o romancista é na criação da diligente Joana, que recorda, sob vários aspectos, a criada Jacquotte, do Médecin de Campagne. Semelham-se, por vezes, os dois tipos de serviçais.

João José da Silveira era casado e já tinha descendência, a-pesar-de ter mudado de estado bastante tarde (2), quando Júlio Denis esteve em Ovar.

(1) Gomes Coelho, obr. cit., pág. 54. (2) Em 1854.

Vivia também em sua companhia uma irmã, que o romancista poderia aproveitar para modêlo da solicita Joana; mas é mais provável que a sugestão de Balzac lhe desse elementos para o estudo de uma outra personagem que trasladasse depois para a companhia do cirurgião João Semana.

João José da Silveira nasceu no sítio das Luzes, em Ovar, em casa de seus pais. Diz o padre Manuel Lírio que o nome do lugar provém do encargo com que estava onerada a casa, no tempo do avô de João Semana, de pagar avultados fóros a Nossa Senhora da Luz, de Aveiro. Havia uma fonte na casa, depois cedida à Câmara Municipal e que ainda hoje é conhecida pelo nome de fonte das Luzes.

Foram seus pais o tenente de milícias Damião José da Silveira e sua espôsa D. Ana Rosa do Paraíso que, segundo consta, era aparentada com os marqueses de Távora. Uma' das suas ascendentes, informa ainda o padre Manuel Lírio (1), mãe ou avó, refugiou-se em Ovar para escapar à perseguição do Marquês de Pombal. E acrescenta:

«Tinha o apelido de Ponces de Lião, que

(1) Padre Manuel Lírio, loc. cit., pag. 6.

deixou para mais fàcilmente poder recatar-se sob o mais rigoroso e prudente incógnito» (1).

Como bisneto do Morgado das Luzes, supunha seu pai que teria o bastante para passar, sem ter que recorrer às canseiras de uma carreira literária, podendo obter com facilidade um título militar honorífico como o que êle usufruia.

Não pensou assim João José da Silveira e, já homem feito, foi-se até o Pôrto tirar o curso médico-cirúrgico, matriculando-se no primeiro ano em 7 de Outubro de 1835, com 22 anos de idade.

Diz Maximiano Lemos, na sua monografia:

(1) Foi casado com D. Luísa Ludovina da Fonseca, ainda sua prima, de quem houve os seguintes filhos: 1) D. Maria Mafalda, hoje viúva e que foi casada com Luís José Pinto Camelo Coelho, de quem teve quatro filhos, dois falecidos e dois vivos: João da Silveira Camelo, casado, e D. Alcinda Isaura, casada; 2) D. Estefânia, casada com José da Silva Carrelhas, que teve quatro filhos, sendo vivas D. Luísa, casada, e D. Maria, solteira; 3) Maria Luisa, solteira; 4) Manuel Maria, falecido no 2.o ano de Medicina; 5) D. Hermínia, casada com António Augusto de Abreu, com quatro filhos vivos: Joaquim Maria, casado, D. Irene, casada, Fernando, solteiro e D. Maria, casada; 6) D. Hortênsia, solteira; 7) Isaac, casado com D. Rita de Oliveira Gomes, com um filho vivo: Luciano; 8) D. Joana, falecida em 1923.

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