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XVI

«OS FIDALGOS DA CASA
MOURISCA »

O chegarmos ao fim da nossa jornada através da obra de Júlio Denis, não podemos deixar de consagrar algumas palavras ao seu último livro -Os Fidalgos da Casa Mourisca - escrito nos derradeiros anos da sua vida.

Como romance é um dos melhores do autor: tem acção, tem movimento. Mas entre as obras. de Júlio Denis é, a-pesar-de tudo, a menos interessante. Concorrem para isso várias circunstâncias, avultando, como principal, o ser um romance de tese muitas vezes explorada no livro e no teatro: o conflito entre o trabalho e as tradições de família, entre a burguesia e a nobreza.

Além disso, os tipos apresentados são mais ou menos conhecidos, embora alguns desenhados com raro vigor. Tomé da Póvoa e D. Luís,

o velho fidalgo da Casa Mourisca, representam a síntese das duas correntes em oposição no romance. Ambos com qualidades, têm, a dentro das fórmulas em que se orientam, muito de comum com personagens já estudadas por outros autores. Dulcifica-os o espírito subtil de Júlio Denis e tanto que, por vezes, nos parecem inteiramente inéditos, tanta bondade se encontra nos seus propósitos e tanta nobreza nas suas decisões.

Jorge e Maurício têm um certo cunho de originalidade. Berta é uma personagem de romance, à época, e Gabriela não desmancha o conjunto do enrêdo.

Júlio Denis é talvez, neste livro, mais romancista do que em qualquer outro; não se perde em tantos comentários psicológicos, nem se demora em análises tão longas de pessoas e de coisas. Pois êstes pequenos senões, que lhe têm censurado nos outros romances, são para nós a sua melhor qualidade. E tanto que nos determina a dar preferência às Pupilas, à Família inglesa e à Morgadinha.

Os Fidalgos são muito raciocinados: nasceram mais do cérebro do que de coração (1).

(1) Entre os manuscritos de Júlio Denis encontrámos um com a data de 1870, subordinado ao título: Subsídios para o romance «Os Fidalgos da Casa Mourisca».

São vários apontamentos tirados do Compêndio de

A sua primeira trilogia é um poema de sentimentos; é a vida do romancista a dilatar-se, a desdobrar-se, patenteando-se com tôdas as suas virtudes e os seus pequenos defeitos.

Nos Fidalgos, Júlio Denis não ousa representar-se. Por vezes parece deambular entre a gravidade de Jorge e a leviandade de Maurício; mas não se fixa, não se demora. As suas psicologias tocam-se, mas não se identificam. Júlio Denis, talvez por lhe merecerem maior simpatia os dois rapazes, filhos do velho fidalgo D. Luís, ainda os apresenta órfãos de mãe. Não quis que essa nota, constante em todos os romances, faltasse na sua última obra. É o único ponto bem marcado de contacto com a sua individualidade. Mas sente-se que já não ousa mostrar-se em público. Doente, começando a sentir o desalento da última fase duma tuberculose pulmonar que avançava dia a dia, cônscio da finalidade que sentia avizinhar-se, faltaram-lhe iniciativas para tal cometimento.

Júlio Denis representa-se sempre como um esbelto rapaz, franzino, mas sàdio; delicado,

Economia rural, de Rebêlo da Silva. As citações trazem as indicações das páginas.

Este trabalho de compilação não foi directamente utilizado pelo autor. Serviu-lhe apenas de elemento de estudo.

mas vigoroso. Até a data infeliz em que começou a delinear os Fidalgos, vivia dessa aspiração. Nela se instalou para se ver em Carlos Whitestone, em Daniel e em Henrique de Souzelas. Neste já aparece neurasténico, mas possuidor de bastante robustez. Em tôdas estas transfigurações não teve que falsear a verdade. Era assim, tal qual se apresentava, que êle julgava vir a ser, quando estivesse restabelecido.

Mas quando escreveu os Fidalgos, tôdas as ilusões tinham desabado. Já não sentia a mocidade que espalha às mãos-cheias pelas personagens em que vive na sua trilogia. Se o fizesse, ou faltaria à verdade, o que ia de encontro ao seu feitio moral, ou teria que mostrar o modelo tal qual era, o que repugnava ao seu ideal de artista e compungia a sua alma de doente.

O romancista teve o cuidado de excluir da sua obra tudo o que podesse retratar o descalabro do seu organismo enfermo. E tanto assim é, tanto arreda do seu espírito o que possa lembrar a sua doença, que nos Fidalgos não há, como dissemos, referências à Medicina, êle que tão pródigo foi em não esquecer a sua profissão nos outros romances!

Há, numa ou noutra passagem dos Fidalgos, alusões directas à sua vida, embora escritas a propósito de bem diferentes personagens. Citemos um exemplo:

«O passado, ressuscitando, perdêra já o prestígio e a poesia, que só como passado tem.

«Ó feiticeiras fadas que nos acompanhais quando por longe andamos, devorados de saudades, a lembrar-nos da terra em que nascemos, porque tão de-pressa nos abandonais à chegada? Porque dissipais os vapores inebriantes de que rodeáveis aquelas imaginações aos nossos olhos fascinados e nos fazeis ver a realidade como a víamos antes?» (1)

Júlio Denis dividia o seu tempo entre o Funchal e o Pôrto e estas sensações eram, portanto, muito suas conhecidas. Deslocava-as de si para as personagens do romance; mas, mesmo assim, não deixava de registar uma ou outra nota do seu modo de sentir de momento.

Para o estudo psicológico do autor, os Fidalgos são, porém, uma obra fria e incaracterística. Não nos traz subsídios novos, porque êle não vive na scena, não palpita no desenrolar da acção.

Interessante como romance, não nos dá os encantos das suas crónicas aldeas, em que não há teses a defender, mas em que se sente a vida a palpitar de verdade.

(1) Júlio Denis, Os Fidalgos da Casa Mourisca, 2.a ed., Pôrto, 1872, vol. I, pág. 103.

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