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mandas e hipotecas haviam, de ano para ano, reduzido em proporção assustadora; a título de familiares, que nunca se deviam esquecer do favor que recebiam nisso, sob pena de lhes ser lembrado, com severas admoestações, um boticário da vila e um doutor que ajudava a Morgada a perder várias demandas e lhe preparava o andamento de outras.

« lugar onde, de ordinário, se reünia esta escolhida assemblea, era uma pequena sala quadrada, de soalho nu e carcomido, teto de castanho pintado de branco, e altas paredes que uma série de quadros adornava, de caixilhos negros, contendo umas péssimas litografias, escandalosamente coloridas, das passagens mais interessantes da parábola do filho pródigo,

«A mobília desta sala mostrava uma variedade prodigiosa; o canapé de mogno era flanqueado por duas cadeiras de pau preto de estilo inteiramente diverso; em volta da sala, cadeiras de variadas qualidades, e junto ao canapé, um pequeno tapete que revelava longos anos de serviço no desbotado das côres. Sôbre uma pequena mesa, uma redoma onde se abrigava um S. João de marfim e ao lado dois castiçais de prata ofuscantemente polidos.

«Logo ao princípio da noite, às horas em que, quando o vento não era contrário, chegavam à solidão do solar da Morgada os sons das Ave-Marias da Igreja de Ovar, a mesa

puxava-se para junto do canapé, os habituais convivas acercavam-se dela e a criada trazia os preparativos do chá.

«D. Dorotea dignava-se prepará-lo e serví-lo com hospitaleira amabilidade e a conversa principiava a tomar uma vivacidade mais considerável, graças à confortável infusão e ao delicioso doce com que a verbosidade dos circunstantes era alimentada. D. Dorotea, constrangida pelas circunstâncias a prescindir de muitas ostentações, limitava-se a caprichar no bem servido do chá, e em mostrar, no serviço magnífico de prata e porcelana, uma passada riqueza de que hoje restavam apenas raros espécimes. Educada num convento de Aveiro, D. Dorotea trouxera de lá uma qualidade apreciável, a de saber preparar uma infinita variedade de doce que lhe grangeara entre a vizinhança uma merecida reputação.

«D. Dorotea tinha sido casada com um coronel de milícias que a deixou viúva passado pouco tempo e do qual lhe ficou um filho único para educar e imensas dívidas a satisfazer.

«A decadência da sua fortuna principiava daí; procuradores às mãos de quem a confiou continuaram a obra até o ponto em que então

se encontrava.

«O filho da sr. Morgada, na impossibilidade de viver da sua fortuna, foi obrigado a seguir uma carreira. A única que pareceu à descen

dente dos Carragenas digna de tão alta linhagem foi a das armas. Duarte foi enviado para Lisboa e recomendado a um titular, seu primo em terceiro grau, e entrou para o colégio dos nobres»,

Como esta descrição, feita despreocupadamente e sôbre que não recaíu, por certo, a cuidada revisão que dava aos seus trabalhos, é cheia de flagrante verdade! Lembram-nos ainda algumas D. Doroteas que conhecemos por aquelas paragens de terras da Beira-Ria e os preciosos chás às tardes que gozámos em criança, com os excelentes doces caseiros que os acompanhavam.

Ao lermos estas páginas, sentimo-nos involuntàriamente transportados a casas da nossa intimidade infantil e à suavidade terna de olhares amigos que não mais nos esqueceram. Júlio Denis assistiu a estas reuniões e soube fotografá-las na sua linguagem simples e inconfundível.

Numa das cartas a Custódio Passos, escrita de Ovar em 16 de Maio de 1863, dá-nos conta de uma visita que deve ter dado prexteto a esta descrição:

«Agora estou à espera que dêem quatro horas para ir com a família Correia a uma aldeola das imediações que ne dizem ser um sítio pitoresco. Vamos visitar uma tal sr. D...,

filha de um já falecido capitão-mor e que tem presunções de nobreza tão arraigadas que não se digna visitar a maior parte das famílias da vila. É uma preciosa ridícula, cuja única boa qualidade é fazer muito bom doce, graças à sua educação do convento.» (1)

A referida Morgada, a que Júlio Denis dá o nome de D. Dorotea, era uma velha fidalga de Ovar, D. Arcângela Benedita Barbosa Correia de Melo Osório Sarmento, filha do capitão-mor José Manuel Barbosa da Cunha e Melo.

Á Morgada deu Júlio Denis dois dos nomes D. Arcângela usava ou poderia usar: Melo e Albergaria.

que

D. Arcângela vivia na Quinta do Sobral, arredor da vila de Ovar, com sua sobrinha D. Maria Adelaide Barbosa de Cunha e Melo, casada com José do Amaral Osório, filho do primeiro visconde de Almeidinha (2).

Um dos fidalgotes que, ao tempo, freqüentava a casa de D. Arcângela, era António Pinto Coelho de Azevedo (3). Mais tarde também foi vi

(1) Júlio Denis, Inéditos e Esparsos, ed. cit., pág. 170. (2) Titular de Aveiro. Grande perdulário.

(3) Filho de João Pinto da Rocha Coelho de Azevedo e de D. Maria Rita Pereira Coelho de Melo. Vivia em Ovar, donde eram seu pai e avô. Informação do Conde de Azevedo,

sita assídua da casa o seu parente Francisco Joaquim Barbosa de Quadros.

O padre Manuel Rodrigues da Graça freqüentava assiduamente as pacatas reüniões da Morgada e o dr. Pedro Alexandrino Chaves também por lá aparecia.

José Manuel Teixeira de Pinho, encarregado da farmácia do Hospital e a família Correia, a que se refere Júlio Denis nas suas cartas a Custódio Passos, eram também da roda de D. Arcângela.

D. Arcângela, que foi educada no Convento de Jesus, em Aveiro, morreu solteira em Pombal, no ano de 1886, em casa de sua sobrinha D. Maria Adelaide, a que já nos referimos (1).

O romancista fê-la viúva e com um filho que devia depois seguir no romance. Começa aqui a fantasia, que, aliás, se não encontra depois na obra definitiva, como em geral sucedia com as personagens dos primitivos esboços de Júlio Denis, desde que lhe faltassem exemplares de estudo directo.

(1) Informação em parte do dr. José de Almeida, de Ovar, e em parte do Conde de Azevedo. Este nosso amigo possui um manuscrito genealógico acrescentado, nesta parte, com uma nota escrita por seu pai, Francisco Barbosa do Couto Cunha Soto Maior, de Estarreja, por onde se soube a data do falecimento de D. Arcângela.

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