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XXIV.

« Dom Nun' Alvares, digo, verdadeiro
Açoute de suberbos Castelhanos,
Como ja o fero Hunno o foi primeiro
Pera Francezes, pera Italianos.
Outro tambem famoso cavalleiro,
Que a ala direita tem dos Lusitanos,
Apto pera mandal-os e regellos,
Mem Rodrigues se diz de Vasconcellos.

XXV.

«E da outra ala, que a esta corresponde,
Antão Vasques de Almada é capitão,
Que despois foi de Abranches nobre conde,
Das gentes vai regendo a sestra mão.
Logo na retaguarda não se esconde
Das quinas, e castellos o pendão,
Com Joanne rei forte em toda parte,
Que escurecendo o preço vai de Marte.

XXVI.

« Estavam pelos muros temerosas,
E de um alegre mêdo quasi frias,
Rezando as mães, irmãs, damas, e esposas,
Promettendo jejuns, e romarias.

Ja chegam as esquadras bellicosas
Defronte das imigas companhias
Que com grita grandissima os recebem ;
E todas grande dúvida concebem.

XXVII.

Respondem as trombetas messageiras,
Pífaros sibilantes, e atambores;
Alferezes volteam as bandeiras,

Que variadas são de muitas cores.
Era no secco tempo, que nas eiras
Ceres o fruito deixa aos lavradores;
Entra em Astrea o sol, no mez de agosto;
Baccho das uvas tira o doce mosto.

XXVIII.

« Deu signal a trombeta castelhana
Horrendo, fero, ingente e temeroso :
Ouviu-o o monte Artábro; e Guadiana
Atraz tornou as ondas de medroso :
Ouviu-o o Douro, e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso :

E as mães, que o som terribil escuitaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.

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XXIX.

Quantos rostos alli se vêem sem cor, Que ao coração acode o sangue amigo! Que nos perigos grandes, o temor É maior, muitas vezes, que o perigo : E se o não é, parece-o; que o furor De offender, ou vencer o duro imigo, Faz não sentir que é perda grande e rara, Dos membros corporaes, da vida cara.

XXX.

«Começa-se a travar a incerta guerra;

De ambas partes se move a primeira ala;
Uns leva a defensão da propria terra,

Outros as esperanças de ganhala :

Logo o grande Pereira, em quem se encerra Todo o valor, primeiro se assinala;

Derriba, e encontra, e a terra emfim semeia Dos que a tanto desejam, sendo alheia.

XXXI.

« Ja pelo espesso ar os estridentes
Farpões, settas, e varios tiros voam :
Debaixo dos pes duros dos ardentes
Cavallos, treme a terra, os valles soam :
Espedaçam-se as lanças; e as frequentes
Quédas, co'as duras armas, tudo atroam:
Recrescem os imigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca.

XXXII.

«Eis alli seus irmãos contra elle vão :
(Caso feo e cruel!) mas não se espanta;
Que menos é querer matar o irmão,
Quem contra o rei, e a patria se alevanta :
D'estes arrenegados muitos são

No primeiro esquadrão, que se adianta
Contra irmãos, e parentes (caso estranho!)
Quaes nas guerras civis de Julio, e Manho.

XXXIII.

«O' tu Sertorio, o'nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos,
Que contra vossas patrias, com profano
Coração, vos fizestes inimigos;
Se la no reino escuro de Sumano
Receberdes gravissimos castigos,
Dizei-lhe que tambem dos Portuguezes
Alguns traidores houve algumas vezes.

XXXIV.

«Rompem-se aqui dos nossos os primeiros;
Tantos dos inimigos a elles vão!
Está alli Nuno, qual pelos outeiros

De Ceita está o fortissimo leão,
Que cercado se ve dos cavalleiros,
Que os campos vão correr de Tetuão;
Perseguen-o co'as lanças ; e elle iroso,
Torvado um pouco está, mas não medroso.

XXXV.

« Com torva vista os ve; mas a natura

Ferina, e a ira não lhe compadecem

Que as costas dê ; mas antes na espessura Das lanças se arremeça, que recrecem. Tal está o cavalleiro, que a verdura Tinge co' o sangue alheio: alli perecem Alguns dos seus ; que o animo valente Perde a virtude contra tanta gente.

XXXVI.

« Sintiu Joanne a affronta, que passava
Nuno; que, como sabio capitão,
Tudo corria, e vią, e a todos daya,
Com presença e palavras, coração.
Qual parida leoa, fera e brava,

Que os filhos, que no ninho sos estão,
Sentiu que, em quanto pasto lhe buscara,
O pastor de Massylia lh' os furtara;

XXXVII.

« Corre raivosa, e freme, e com bramidos
Os montes Sete-Irmãos atroa, e abala;
Tal Joanne, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode á primeira ala.
«O' fortes companheiros, o' subidos
Cavalleiros, a quem nenhum se iguala,
Defendei vossas terras; que a esperança
Da liberdade está na vossa lança.

XXXVIII.

« Vedes-me aqui rei vosso, e companheiro,
Que entre as lanças, e settas, e os arnezes
Dos inimigos corro, e vou primeiro:
Pelejai verdadeiros Portuguezes, »
Isto disse o magnânimo guerreiro;
E sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira; e d' este unico tiro,
Muitos lançaram o último suspiro.

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