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XCIX.

« Ja que n' esta gostosa vaídade
Tanto enlevas a leve phantesia ;
Ja que á bruta crueza, e feridade
Pozeste nome esforço, e valentia ;
Ja que prézas em tanta cantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada; pois que já
Temeu tanto perdel-a quem a dá :

C.

<< Não tens juncto comtigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue elle do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Christo so pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras, e riqueza mais desejas?
Não é elle per armas esforçado,
Se queres per victórias ser louvado?

CI.

« Deixas crear ás portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tam longe,
Per quem se despovoe e reino antigo,
Se enfraqueça, e se va deitando a longe?
Buscas o incerto e incógnito perigo,
Porque a fama te exalte, e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga copia,
Da India, Persia, Arábia, e de Ethiopia?

CII.

« Oh maldicto o primeiro, que no mundo
Nas ondas véla poz em secco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo, e tenho.
Nunca juizo algum alto e profundo,
Nem cíthara sonora, ou vivo ingenho,
Te dê por isso fama, nem memoria ;
Mas comtigo se acabe o nome, e gloria.

CIII.

« Trouxe o filho de Jápeto do ceo

O fogo, que ajunctou ao peito humano;
Fogo, que o mundo em armas accendeo,
Em mortes, em deshonras: (grande engano!)
Quanto melhor nos fôra, Prometheo,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estatua illustre não tivera
Fogo de altos desejos, que a movera!

CIV.

<< Não commettera o moço miserando
O carro alto do pae, nem o ar vasio
O grande architector, co'o filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro fama ao rio:
Nenhum commettimento alto e nefando,
Per fogo, ferro, agua, calma, e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Misera sorte! Estranha condição! »

CANTO QUINTO.

<< Estas sentenças taes o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As azas ao sereno e socegado
Vento, e do porto amado nos partimos :
E, como é ja no mar costume usado,
A véla desfraldando, o ceo ferimos,
Dizendo : « Boa viajem» : logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento.

II.

« Entrava n'este tempo o eterno lume No animal Neméu 'truculento;

E o mundo, que com tempo se consume,
Na sexta idade andava enfermo e lento :
N'ella ve, como tinha per costume,
Cursos do sol quatorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a armada se estendia.

III.

«Ja a vista pouco e pouco se desterra
D'aquelles patrios montes, que ficavam :
Ficava o caro Tejo, e a fresca serra
De Cintra; e n'ella os olhos se alongavam.
Ficava-nos tambem na amada terra
O coração, que as mágoas la deixavam;
E ja despois que toda se escondeo,
Não vimos mais emfim que mar, e ceo.

IV.

« Assi fomos abrindo aquelles mares,
Que geração alguma não abriu,
As novas ilhas vendo, e os novos ares,
Que o generoso Henrique descobriu :
De Mauritânia os montes, e logares,
Terra, que Antheo n' um tempo possuiu,
Deixando á mão esquerda; que á direita
Não ha certeza d'outra, mas suspeita.

V.

« Passámos a grande ilha da Madeira,
(Que do muito arvoredo assi se chama)
Das que nós povoámos, a primeira,
Mais célebre per nome, que per fama :
Mas nem por ser do mundo a derradeira
Se lhe avantajam quantas Venus ama;
Antes, sendo esta sua, se esquecera
De Cypro, Gnido, Páphos, e Cytherɛ.

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