« Ja que n' esta gostosa vaídade Tanto enlevas a leve phantesia ; Ja que á bruta crueza, e feridade Pozeste nome esforço, e valentia ; Ja que prézas em tanta cantidade O desprezo da vida, que devia De ser sempre estimada; pois que já Temeu tanto perdel-a quem a dá :
<< Não tens juncto comtigo o Ismaelita, Com quem sempre terás guerras sobejas? Não segue elle do Arábio a lei maldita, Se tu pola de Christo so pelejas? Não tem cidades mil, terra infinita, Se terras, e riqueza mais desejas? Não é elle per armas esforçado, Se queres per victórias ser louvado?
« Deixas crear ás portas o inimigo, Por ires buscar outro de tam longe, Per quem se despovoe e reino antigo, Se enfraqueça, e se va deitando a longe? Buscas o incerto e incógnito perigo, Porque a fama te exalte, e te lisonge, Chamando-te senhor, com larga copia, Da India, Persia, Arábia, e de Ethiopia?
CII.
« Oh maldicto o primeiro, que no mundo Nas ondas véla poz em secco lenho! Digno da eterna pena do Profundo, Se é justa a justa lei, que sigo, e tenho. Nunca juizo algum alto e profundo, Nem cíthara sonora, ou vivo ingenho, Te dê por isso fama, nem memoria ; Mas comtigo se acabe o nome, e gloria.
CIII.
« Trouxe o filho de Jápeto do ceo
O fogo, que ajunctou ao peito humano; Fogo, que o mundo em armas accendeo, Em mortes, em deshonras: (grande engano!) Quanto melhor nos fôra, Prometheo, E quanto pera o mundo menos dano, Que a tua estatua illustre não tivera Fogo de altos desejos, que a movera!
<< Não commettera o moço miserando O carro alto do pae, nem o ar vasio O grande architector, co'o filho, dando Um, nome ao mar, e o outro fama ao rio: Nenhum commettimento alto e nefando, Per fogo, ferro, agua, calma, e frio, Deixa intentado a humana geração. Misera sorte! Estranha condição! »
<< Estas sentenças taes o velho honrado Vociferando estava, quando abrimos As azas ao sereno e socegado Vento, e do porto amado nos partimos : E, como é ja no mar costume usado, A véla desfraldando, o ceo ferimos, Dizendo : « Boa viajem» : logo o vento Nos troncos fez o usado movimento.
II.
« Entrava n'este tempo o eterno lume No animal Neméu 'truculento;
E o mundo, que com tempo se consume, Na sexta idade andava enfermo e lento : N'ella ve, como tinha per costume, Cursos do sol quatorze vezes cento, Com mais noventa e sete, em que corria, Quando no mar a armada se estendia.
III.
«Ja a vista pouco e pouco se desterra D'aquelles patrios montes, que ficavam : Ficava o caro Tejo, e a fresca serra De Cintra; e n'ella os olhos se alongavam. Ficava-nos tambem na amada terra O coração, que as mágoas la deixavam; E ja despois que toda se escondeo, Não vimos mais emfim que mar, e ceo.
« Assi fomos abrindo aquelles mares, Que geração alguma não abriu, As novas ilhas vendo, e os novos ares, Que o generoso Henrique descobriu : De Mauritânia os montes, e logares, Terra, que Antheo n' um tempo possuiu, Deixando á mão esquerda; que á direita Não ha certeza d'outra, mas suspeita.
« Passámos a grande ilha da Madeira, (Que do muito arvoredo assi se chama) Das que nós povoámos, a primeira, Mais célebre per nome, que per fama : Mas nem por ser do mundo a derradeira Se lhe avantajam quantas Venus ama; Antes, sendo esta sua, se esquecera De Cypro, Gnido, Páphos, e Cytherɛ.
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