« Deixámos de Massylia a esteril costa, Onde seu gado os Azenegues pastam ; Gente, que as frescas aguas nunca gosta, Nem as hervas do campo bem lhe abastam : A terra a nenhum fruito emfim disposta, Onde as aves no ventre o ferro gastam, Padecendo de tudo extrema inopia, Que aparta a Barbaria de Ethiopia.
« Passámos o limite aonde chega O sol, que pera o Norte os carros guia, Onde jazem os povos, a quem nega O filho de Clymene a côr do dia. Aqui gentes estranhas lava, e rega Do negro Sanagá a corrente fria, Onde o cabo Arsinário o nome perde, Chamando-se dos nossos Cabo-Verde.
« Passadas tendo ja as Canárias ilhas Que tiveram per nome Fortunadas, Entrámos, navegando, pelas filhas Do velho Hespério, Hespérides chamadas; Terras per onde novas maravilhas Andaram vendo ja nossas armadas: Alli tomamos porto com bom vento, Por tomarmos da terra mantimento.
« A'quella ilha aportámos, que tomou
O nome do guerreiro Sanct' Iago ;
Sancto, que os Hespanhoes tanto ajudou A fazerem nos Mouros bravo estrago. D'aqui, tanto que Bóreas nos ventou, Tornámos a cortar o immenso lago Do salgado Oceano; e assi deixámos A terra, onde refrêsco doce achámos,
«Per aqui rodeando a larga parte De Africa, que ficava ao Oriente; A provincia Jalofo, que reparte Per diversas nações a negra gente; A mui grande Mandinga, per cuja arte Logrâmos o metal rico e luzente, Que do curvo Gambêa as aguas bebe, As quaes o largo Atlântico recebe :
« As Dórcadas passámos, povoadas Das irmãs, que outro tempo alli viviam ; Que de vista total sendo privadas, Todas tres d' um so olho se serviam. Tu so, tu cujas tranças encrespadas Neptuno la nas aguas accendiam, Tornada ja de todas a mais fêa, De viboras encheste a ardente arêa.
Sempre emfim pera o Austro a aguda proa, No grandissimo golpham nos mettemos,
Deixando a serra aspérrima Leoa,
Co'o cabo, a quem das Palmas nome demos. O grande rio, onde batendo soa
O mar nas praias nôtas, que alli temos, Ficou, co' a ilha illustre, que tomou
O nonie d'um, que o lado a Deus tocou.
« Alli o mui grande reino está de Congo, Per nós ja convertido á fe de Christo, Per onde o Zaire passa claro e longo; Rio pelos antiguos nunca visto. Per este largo mar emfim me alongo Do conhecido pólo de Callisto, Tendo o término ardente ja passado, Onde o meio do mundo é limitado,
« Ja descoberto tínhamos diante, La no novo hemisphério, nova estrellą, Não vista de outra gente, que ignorante Alguns tempos esteve incerta d' ella, Vimos a parte menos rutilante, E, por falta d' estrellas, menos bella, Do pólo fixo, onde inda se não sabe Que outra terra comece, ou mar acabe.
Assi passando aquellas regiões, Per onde duas vezes passa Apolo, Dous hinvernos fazendo, e dous verões, Em quanto corre d' um ao outro polo; Per calmas, per tormentas, e oppressões, Que sempre faz no mar o irado Eolo, Vimos as Ussas, a pezar de Juno, Banharem-se nas aguas de Neptuno.
« Contar-te longamente as perigosas Cousas do mar, que os homens não intendem, Subitas trovoadas temerosas,
Relampagos, que o ar em fogo accendem; Negros chuveiros, noites tenebrosas, Bramidos de trovões, que o mundo fendem, Não menos é trabalho, que grande erro, Aindaque eu tivesse a voz de ferro.
« Os casos vi, que os rudos marinheiros, Que teem por mestra a longa experiencia, Contam por certos sempre, e verdadeiros, Julgando as cousas so pela apparencia ; E que os que teem juizos mais inteiros, Que so per puro ingenho, e per sciencia, Vêem do mundo os segredos escondidos, Julgam por falsos, ou mal intendidos.
« Vi, claramente visto, o lume vivo, Que a marítima gente tem por santo Em tempo de tormenta, e vento esquivo, De tempestade escura, e triste pranto. Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa certo de alto espanto, Ver as nuvens do mar, com largo cano, Sorver as altas aguas do Oceano.
« Eu o vi certamente (e não presumo Que a vista me enganava) levantar-se No ar um vaporzinho, e sutil fumo, E, do vento trazido, rodear-se: D'aqui levado um cano ao pólo sumo Se via, tam delgado, que enxergar-se Dos olhos facilmente não podia: Da materia das nuvens parecia.
« l'a-se pouco e pouco accrescentando, E mais que um largo masto se engrossava: Aqui se estreita, aqui se alarga, quando Os golpes grandes de agua em si chupava: Estava-se co' as ondas ondeando;
Em cima d' elle ua nuvem se espessava, Fazendo-se maior, mais carregada
Co'o cargo grande d' agua em si tomada.
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