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XXI.

Qual roxa sanguesuga se veria
Nos beiços da alimária (que imprudente
Bebendo a recolheu na fonte fria)

Fartar co' o sangue alheio a sède ardente:
Chupando mais e mais se engrossa, e cria;
Alli se enche, e se alarga grandemente :
Tal a grande columna, enchendo, augmenta
A si, e a nuvem negra, que sustenta.

XXII.

<«< Mas despois que de todo se fartou,
O pe, que tem no mar, a si recolhe;
E pelo ceo, chovendo, emfim voou;
Porque co'a agua a jacente agua molhe:
A's ondas torna as ondas, que tomou ;
Mas o sabor do sal lhe tira, e tolhe.
Vejam agora os sabios na escritura,
Que segredos são estes da natura.

XXIII.

«Se os antiguos philosophos, que andaram
Tantas terras, por ver segredos d'ellas,
As maravilhas, que eu passei, passaram,
A tam diversos ventos dando as vellas;
Que grandes escripturas, que deixaram!
Que influição de signos, e de estrellas!
Que estranhezas! que grandes calidades!
E tudo, sem mentir, puras verdades.

XXIV.

« Mas ja o planeta, que no céo primeiro Habita, cinco vezes apressada,

Agora meio rosto, agora inteiro

Mostrara, em quanto o mar cortava a armada ;
Quando da ethérea gavea um marinheiro,
Prompto co' a vista, «Terra, terra, » brada :
Salta no bordo alvoroçada a gente
Co' os olhos no horizonte do Oriente.

XXV.

« A' maneira de nuvens se começam
A descobrir os montes, que enxergamos;
As ancoras pesadas se adereçam ;
As vélas, ja chegados, amainâmos :
E pera que mais certas se conheçam
As partes tam remotas onde estamos,
Pelo novo instrumento do Astrolabio,
Invenção de sutil juizo e sabio:

XXVI.

« Desembarcamos logo na espaçosa
Parte, per onde a gente se espalhou,
De ver cousas estranhas desejosa
Da terra, que outro povo não pizou :
Porêm eu co' os pilotos na arenosa
Praia, por vermos em que parte estou,
Me detenho em tomar do sol a altura,
E compassar a universal pintura.

XXVII.

« Achámos ter de todo ja passado
Do semicápro peixe a grande meta,
Estando entre elle, e o círculo gelado
Austral, parte do mundo mais secreta.
Eis de meus companheiros rodeado
Vejo um estranho vir de pelle preta,
Que tomaram per força, em quanto apanha
De mel os doces favos na montanha.

XXVIII.

« Torvado vem na vista, como aquelle
Que não se vira nunca em tal extremo:
Nem elle intende a nós, nem nós a elle,
Selvagem mais que o bruto Polyphemo.
Começo-lhe a mostrar da rica pelle
De Colchos o gentil metal supremo,
A prata fina, a quente especiaria:
A nada d'isto o bruto se movia.

XXIX.

« Mando mostrar-lhe peças mais somenos,
Contas de crystallino transparente,
Alguns soantes cascaveis pequenos,
Um barrete vermelho, côr contente.
Vi logo per signaes, e per acenos,
Que com isto se alegra grandemente:
Mando-o soltar comtudo; e assi caminha
Pera a povoação, que perto tinha.

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« Mas logo ao outro dia, seus parceiros
Todos nus, e da côr da escura treva,
Descendo pelos ásperos outeiros,

As peças véem buscar, que est' outro leva.
Domesticos ja tanto, e companheiros

Se nos mostram, que fazem que se atreva
Fernan' Velloso a ir ver da terra o trato,
E partir-se com elles pelo mato.

XXXI.

« É Velloso no braço confiado,

E de arrogante, crê que vai seguro ;
Mas, sendo um grande espaço ja passado,
Em que algum bom signal saber procuro,
Estando, a vista alçada, co'o cuidado
No aventureiro, eis pelo monte duro
Apparece; e, segundo ao mar caminha,
Mais apressado, do que fôra, vinha.

XXXII.

« O batel de Coelho foi depressa
Polo tomar; mas antes que chegasse,
Um Ethiope ousado se arremessa
A elle, porque não se lhe escapasse :
Outro, e outro lhe saiem: ve-se em pressa
Velloso, sem que alguem lhe alli ajudasse;
Acudo eu logo; e em quanto o remo aperto,
Se mostra um bando negro descoberto.

XXXII.

« Da espessa nuvem settas, e pedradas
Chovem sobre nós outros sem medida;
E não foram ao vento emvão deitadas,
Que esta perna truxe eu d'alli ferida;
Mas nós, como pessoas magoadas,
A resposta lhe démos tam crescida,
Que em mais, que nos barretes, se suspeita
Que a cor vermelha levam d'esta feita.

XXXIV.

« E sendo ja Velloso em salvamento,
Logo nos recolhemos pera a armada,
Vendo a malicia fea, e rudo intento
Da gente bestial, bruta e malvada :
De quem nenhum melhor conhecimento
Podémos ter da India desejada,

Que estarmos inda muito longe d'ella:
E assi tornei a dar ao vento a vella,

XXXV.

« Disse então a Velloso um companheiro, (Começando-se todos a surrir)

« O' lá, Velloso amigo, aquelle outeiro É melhor de descer, que de subir. » « Si é (responde o ousado aventureiro); Mas quando eu pera ca vi tantos vir D'aquelles cães, depressa um pouco vim, Por me lembrar que estaveis ca sem mim. »

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