« Contou então, que tanto qué passaram Aquelle monte, os negros de quem fallo, Avante mais passar o não deixaram, Querendo, senão torna, alli matallo : E tornando-se, logo se emboscaram: Porque saindo nós pera tomallo, Nos podessem mandar ao reino escuro, Por nos roubarem mais a seu seguro.
« Porêm ja cinco soes eram passados Que d'alli nos partiramos, cortando Os mares nunca d'outrem navegados, Prosperamente os ventos assoprando; Quando uma noite estando descuidados Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem, que os ares escurece, Sobre nossas cabeças apparece.
Tam temerosa vinha e carregada, Que poz nos corações um grande medo : " Bramindo o negro mar, de longe brada, Como se désse emvão n'algum rochedo. « O' Potestade (disse) sublimada! Que ameaço divino, ou que segredo Este clima, e este mar nos apresenta, Que mor cousa parece, que tormenta? »
« Não acabava, quando uma figura Se nos mostra no ar, robusta e válida, De disforme e grandissima estatura, O rosto carregado, a barba esquálida : Os olhos encovados, e a postura Medonha e má, e a côr terrena e pállida; Cheios de terra, e crespos os cabellos, A bocca negra, os dentes amarellos.
Tam grande era de membros, que bem posso Certificar-te, que este era o segundo
De Rhodes estranhissimo colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo:
C' um tom de voz nos falla horrendo e grosso, Que pareceu sair do mar profundo:
Arripiam-se as carnes, e o cabello
A mi, e a todos, so de ouvil-o, e vello.
«E disse: «O' gente ousada mais que quantas
No mundo commetteram grandes cousas;
Tu, que per guerras cruas, taes e tantas,
per trabalhos vãos nunca repousas:
Pois os vedados términos quebrantas,
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo ha ja que guardo e tenho, Nunca arados d'estranho, ou proprio lenho:
« Pois vens ver os segredos escondidos Da natureza, e do humido elemento, A nenhum grande humano concedidos De nobre ou de immortal merecimento: Ouve os damnos de mi, que apercebidos Estão a teu sobejo atrevimento
Per todo o largo mar, e pela terra, Que inda has de sujugar com dura guerra.
« Sabe que quantas naus esta viagem, Que tu fazes, fizerem de atrevidas, Inimiga terão esta paragem
Com ventos, e tormentas desmedidas. E da primeira armada, que passagem Fizer per estas ondas insofridas, Eu farei d' improviso tal castigo, Que seja mor o damno, que o perigo.
Aqui espero tomar (se não me engano) De quem me descobriu, summa vingança : E não se acabará so n'isto o dano
De vossa pertinace confiança :
Antes em vossas naus vereis cada ano, (Se é verdade o que meu juizo alcança) Naufragios, perdições de toda sorte, Que o menor mal de todos seja a morte.
«E do primeiro illustre, que a ventura Com fama alta fizer tocar os ceos, Serei eterna e nova sepultura, Per juizos incógnitos de Deos. Aqui porá da turca armada dura Os suberbos e prósperos tropheos : Comigo de seus dampos o ameaça A destruida Quiloa, com Mombaça.
« Outro tambem virá de honrada fama, Liberal, cavalleiro, enamorado,
E comsigo trará a fermosa dama,
Que Amor, per gran' mercê, lhe terá dado. Triste ventura, e negro fado os chama N'este terreno meu, que duro e irado Os deixará d' um cru naufragio vivos, Pera verem trabalhos excessivos.
« Verão morrer com fome os filhos caros, Em tanto amor gerados, e nascidos; Verão os Cafres ásperos e avaros Tirar á linda dama seus vestidos: Os crystallinos membros e preclaros, A' calma, ao frio, ao ar verão despidos; Despois de ter pizada longamente Co'os delicados pés a areia ardente.
« E verão mais os olhos, que escaparem De tanto mal, de tanta desventura, Os dous amantes miseros ficarem Na férvida e implacabil espessura. Alli, despois que as pedras abrandarem Com lagrymas de dor, de magoa pura, Abraçados as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão. »
« Mais ía per diante o monstro horrendo Dizendo nossos fados, quando alçado
Lhe disse eu : « Quem es tu ? que esse estupendo Corpo, certo me tem maravilhado, »
A bocca, e os olhos negros retorcendo, E dando um espantoso e grande brado, Me respondeu com voz pesada e amara, Como quem da pergunta lhe pezara :
« Eu sou aquelle occulto e grande cabo, A quem chamais vós outros Tormentorio ; Que nunca a Tolomeu, Pomponio, Estrabo, Plinio, e quantos passaram, fui notorio: Aqui toda a africana costa acabo
N' este meu nunca visto promontorio, Que pera o pólo antárctico se estende, A quem vossa ousadia tanto offende.
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