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XXXVI.

« Contou então, que tanto qué passaram
Aquelle monte, os negros de quem fallo,
Avante mais passar o não deixaram,
Querendo, senão torna, alli matallo :
E tornando-se, logo se emboscaram:
Porque saindo nós pera tomallo,
Nos podessem mandar ao reino escuro,
Por nos roubarem mais a seu seguro.

XXXVII.

« Porêm ja cinco soes eram passados
Que d'alli nos partiramos, cortando
Os mares nunca d'outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando;
Quando uma noite estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,

Uma nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças apparece.

XXXVIII.

Tam temerosa vinha e carregada, Que poz nos corações um grande medo : " Bramindo o negro mar, de longe brada, Como se désse emvão n'algum rochedo. « O' Potestade (disse) sublimada! Que ameaço divino, ou que segredo Este clima, e este mar nos apresenta, Que mor cousa parece, que tormenta? »

XXXIX.

« Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandissima estatura,
O rosto carregado, a barba esquálida :
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a côr terrena e pállida;
Cheios de terra, e crespos os cabellos,
A bocca negra, os dentes amarellos.

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XL.

Tam grande era de membros, que bem posso Certificar-te, que este era o segundo

De Rhodes estranhissimo colosso,

Que um dos sete milagres foi do mundo:

C' um tom de voz nos falla horrendo e grosso, Que pareceu sair do mar profundo:

Arripiam-se as carnes, e o cabello

A mi, e a todos, so de ouvil-o, e vello.

XLI.

«E disse: «O' gente ousada mais que quantas

No mundo commetteram grandes cousas;

Tu, que per guerras cruas, taes e tantas,

E

per trabalhos vãos nunca repousas:

Pois os vedados términos quebrantas,

E navegar meus longos mares ousas,

Que eu tanto tempo ha ja que guardo e tenho, Nunca arados d'estranho, ou proprio lenho:

XLII.

« Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza, e do humido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de immortal merecimento:
Ouve os damnos de mi, que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento

Per todo o largo mar, e pela terra,
Que inda has de sujugar com dura guerra.

XLIII.

« Sabe que quantas naus esta viagem,
Que tu fazes, fizerem de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem

Com ventos, e tormentas desmedidas.
E da primeira armada, que passagem
Fizer per estas ondas insofridas,
Eu farei d' improviso tal castigo,
Que seja mor o damno, que o perigo.

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XLIV.

Aqui espero tomar (se não me engano) De quem me descobriu, summa vingança : E não se acabará so n'isto o dano

De vossa pertinace confiança :

Antes em vossas naus vereis cada ano,
(Se é verdade o que meu juizo alcança)
Naufragios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte.

XLV.

«E do primeiro illustre, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os ceos,
Serei eterna e nova sepultura,
Per juizos incógnitos de Deos.
Aqui porá da turca armada dura
Os suberbos e prósperos tropheos :
Comigo de seus dampos o ameaça
A destruida Quiloa, com Mombaça.

XLVI.

« Outro tambem virá de honrada fama, Liberal, cavalleiro, enamorado,

E comsigo trará a fermosa dama,

Que Amor, per gran' mercê, lhe terá dado.
Triste ventura, e negro fado os chama
N'este terreno meu, que duro e irado
Os deixará d' um cru naufragio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos.

XLVII.

« Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados, e nascidos;
Verão os Cafres ásperos e avaros
Tirar á linda dama seus vestidos:
Os crystallinos membros e preclaros,
A' calma, ao frio, ao ar verão despidos;
Despois de ter pizada longamente
Co'os delicados pés a areia ardente.

XLVIII.

« E verão mais os olhos, que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes miseros ficarem
Na férvida e implacabil espessura.
Alli, despois que as pedras abrandarem
Com lagrymas de dor, de magoa pura,
Abraçados as almas soltarão

Da fermosa e misérrima prisão. »

XLIX.

« Mais ía per diante o monstro horrendo Dizendo nossos fados, quando alçado

Lhe disse eu : « Quem es tu ? que esse estupendo
Corpo, certo me tem maravilhado, »

A bocca, e os olhos negros retorcendo,
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pezara :

Ꮮ.

« Eu sou aquelle occulto e grande cabo,
A quem chamais vós outros Tormentorio ;
Que nunca a Tolomeu, Pomponio, Estrabo,
Plinio, e quantos passaram, fui notorio:
Aqui toda a africana costa acabo

N' este meu nunca visto promontorio,
Que pera o pólo antárctico se estende,
A quem vossa ousadia tanto offende.

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