« E foi, que de doença crua e fêa, A mais que eu nunca vi, desampararam Muitos a vida; e em terra estranha e alhêa Os ossos pera sempre sepultaram. Quem haverá que sem o ver o crêa? Que tam disformemente alli lhe incharam As gingivas na bocca, que crescia A carne, e junctamente apodrecia.
LXXXII.
Apodrecia c'um fetido e bruto Cheiro, que o ar visinho inficionava : Não tinhamos alli medico astuto, Cirurgião sutil menos se achava :
Mas qualquer, n'este officio pouco instruto, Pela carne ja podre assi cortava Como se fôra morta; e bem convinha Pois que morto ficava quem a tinha.
« Emfim que n'esta incógnita espessura Deixámos pera sempre os companheiros, Que em tal caminho, e em tanta desventura, Foram sempre comnosco aventureiros. Quam facil é ao corpo a sepultura ! Quaesquer ondas do mar, quaesquer outeiros Estranhos, assi mesmo como aos nossos, Receberão de todo o illustre os ossos.
"
Assi que d'este porto nos partimos Com maior esperança, e mor tristeza, E pela costa abaixo o mar abrimos, Buscando algum signal de mais firmeza: Na dura Moçambique emfim surgimos; De cuja falsidade, e má vileza
Ja serás sabedor, e dos enganos Dos povos de Mombaça pouco humanos.
« Até que aqui no teu seguro porto, (Cuja brandura, e doce tractamento Dará saude a um vivo, e vida a um morto) Nos trouxe a piedade do alto assento: Aqui repouso, aqui doce conforto, Nova quietação do pensamento Nos déste e ves-aqui (se attento ouviste) Te contei tudo quanto me pediste.
LXXXVI.
«
A gora julga, o' rei, se houve no mundo Gentes, que taes caminhos commettessem? Crês tu, que tanto Eneas, e o facundo Ulysses, pelo mundo se estendessem? Ousou algum a ver do mar profundo, (Por mais versos que d'elle se escrevessem) Do que eu vi, a poder d' esforço, e de arte, (E do que inda hei de ver) a oitava parte?
« Esse, que bebeu tanto da agua Aonia, Sôbre quem tem contenda peregrina, Entre si, Rhodes, Smyrna, e Colophonia, Athenas, Chios, Argo, e Salamina : Ess' outro, que esclarece toda Ausonia, E cuja voz altísona e divina,
Ouvindo o patrio Míncio, se adormece ; Mas o Tybre, co'o som, se ensuberbece;
« Cantem, louvem, e escrevam sempre extremos D'esses seus semideuses, e encareçam Fingindo magas, Circes, Polyphemos, Sirenas, que co'o canto os adormeçam : Deem-lhe mais navegar á véla, e remos Os Cicónes, e a terra onde se esqueçam Os companheiros, em gostando o loto ; Deem-lhe perder nas aguas o piloto:
<< Ventos soltos lhe finjam, e imaginem Dos odres, e Calypsos namoradas; Harpyas, que o manjar lhe contaminem; Descer ás sombras nuas ja passadas : Que por muito, e por muito que se afinem. N' estas fabulas vās, tam bem sonhadas;
A verdade, que eu conto nua e pura, Vence toda grandiloqua escritura. »
Da bocca do facundo capitão Pendendo estavam todos embebidos, Quando deu fim á longa narração Dos altos feitos grandes e subidos. Louva o rei o sublime coração Dos rêis em tantas guerras conhecidos : Da gente louva a antigua fortaleza, A lealdade d'ânimo, e nobreza.
Vai recontando o povo, que se admira, O caso cadaqual que mais notou : Nenhum d'elles da gente os olhos tira, Que tam longos caminhos rodeou. Mas ja o mancebo Délio as redeas vira, Que o irmão de Lampécia mal guiou, Por vir a descançar nos thetios braços; E el-rei se vai do mar aos nobres paços.
Quam doce é o louvor, e a justa gloria Dos proprios feitos, quando são soados! Qualquer nobre trabalha, que em memoria Vença, ou iguale os grandes ja passados. As invejas da illustre e alheia historia Fazem mil vezes feitos sublimados. Quem valerosas obras exercita, Louvor alheio muito o esperta, e incita.
XCIII.
Não tinha em tanto os feitos gloriosos De Achilles, Alexandro na peleja, Quanto de quem o canta, os numerosos Versos; isso so louva, isso deseja. Os tropheus de Milcíades famosos Themistocles despertam so de inveja; E diz, « que nada tanto o deleitava, Como a voz, que seus feitos celebrava. »
Trabalha por mostrar Vasco da Gama Que essas navegações, que o mundo canta, Não merecem tammanha gloria, e fama, Como a sua, que o ceo, e a terra espanta, Si; mas aquelle heroe, que estima, e ama Com dões, mercês, favores, e honra tanta A lyra mantuana, faz que soe Eneas, e a romana gloria voe,
Dá a terra lusitana Scipiões, Cesares, Alexandros, e dá Augustos; Mas não lhe dá comtudo aquelles dões, Cuja falta os faz duros e robustos : Octavio, entre as maiores oppressões, Compunha versos doctos e venustos, Não dirá Fulvia certo que é mentira, Quando a deixava Antonio por Glaphira.
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