Descobre o fundo nunca descoberto As areias alli de prata fina;
Torres altas se vêem no campo aberto Da transparente massa crystallina : Quanto se chegam mais os olhos perto, Tanto menos a vista determina
Se é crystal o que ve, se diamante, Que assi se mostra claro e radiante.
As portas d' ouro fino, e marchetadas De rico aljofar, que nas conchas nace, De esculptura fermosa estão lavradas, Na qual o irado Baccho a vista pace : E ve primeiro em cores variadas Do velho Chaos a tam confusa face: Vêem-se os quatro Elementos trasladados Em diversos officios occupados.
Alli sublime o Fogo estava em cima, Que em nenhuma materia se sustinha; D'aqui as cousas vivas sempre anima, Depois que Prometheu furtado o tinha. Logo apos elle leve se sublima
O invisibil Ar, que mais asinha
Tomou logar; e nem por quente, ou frio, Algum deixa no mundo estar vasio.
XII.
Estava a Terra em montes revestida De verdes hervas, e arvores floridas, Dando pasto diverso, e dando vida A's alimarias n'ella produzidas. A clara fórma alli stava esculpida Das Aguas entre a terra desparzidas, De pescados creando varios modos, Com seu humor mantendo os corpos todos.
N'outra parte esculpida estava a guerra, Que tiveram os deuses co'os gigantes: Está Typheu debaixo da alta serra
De Ethna, que as flammas lança crepitantes : Esculpido se ve ferindo a terra Neptuno, quando as gentes ignorantes, D'elle o cavallo houveram, e a primeira De Minerva pacífica oliveira.
Pouca tardança faz Lyeu irado
Na vista d'estas cousas; mas entrando Nos paços de Neptuno, que avisado Da vinda sua, o stava ja aguardando A's portas o recebe, acompanhado Das nymphas, que se estão maravilhando De ver, que commettendo tal caminho, Entre no reino d'agua o rei do vinho:
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«O' Neptuno (lhe disse) não te espantes De Baccho nos teus reinos receberes; Porque tambem co' os grandes e possantes Mostra a fortuna injusta seus poderes : Manda chamar os deuses do mar, antes Que falle mais, se ouvir-me o mais quizeres; Verão da desventura grandes modos: Ouçam todos o mal, que toca a todos. »
Julgando ja Neptuno que seria Estranho caso aquelle, logo manda
Tritão, que chame os deuses da agua fria, Que o mar habitam d' uma e d'outra banda : Tritão, que de ser filho se gloria Do rei, e de Salacia veneranda; Era mancebo grande, negro e feio, Trombeta de seu pae, e seu correio.
Os cabellos da barba, e os que decem Da cabeça nos hombros, todos eram Uns limos prenhes d'agua; e bem parecem Que nunca brando pentem conheceram : Nas pontas pendurados não fallecem Os negros misilhões, que alli se geram;
Na cabeça por gorra tinha posta Uma mui grande casca de lagosta.
XVIII.
O corpo nu, e os membros genitais, Por não ter ao nadar impedimento; Mas porêm de pequenos animais Do mar todos cobertos cento e cento: Camarões, e cangrejos, e outros mais, Que recebem de Phebe crescimento; Ostras, e breguigões de musgo sujos; A's costas, com a casca, os caramujos.
Na mão a grande concha retorcida, Que trazia, com força ja tocava : A voz grande canora foi ouvida Per todo o mar, que longe retumbava. Ja toda a companhia apercebida Dos deuses pera os paços caminhava Do deus, que fez os muros de Dardania, Destruidos despois da grega insania.
Vinha o padre Oceano acompanhado Dos filhos, e das filhas, que gerara; Vem Nereu, que com Dóris foi casado, Que todo o mar de nymphas povoara: O propheta Proteu, deixando o gado Marítimo pascer pela agua amara, Alli veio tambem; mas ja sabia O que o padre Lyeu no mar queria,
Vinha per outra parte a linda esposa De Neptuno, de Celo, e Vesta filha, Grave e leda no gesto, e tam fermosa, Que se amansava o mar de maravilha: Vestida uma camisa preciosa Trazia de delgada beatilha, Que o corpo crystallino deixa ver-se; Que tanto bem não é pera esconder-se.
Amphitrite, fermosa como as flores, N'este caso não quiz que fallecesse: O Delphim traz comsigo, que aos amores Do rei lhe aconselhou que obedecesse. Co' os olhos, que de tudo são senhores, Qualquer parecerá que o sol vencesse : Ambas véem pela mão; igual partido, Pois ambas são esposas d' um marido.
Aquella, que das furias de Athamante Fugindo, veio a ter divino estado, Comsigo traz o filho, bello ifante, No numero dos deuses relatado. Pela praia brincando vem diante Com as lindas conchinhas, que o salgado Mar sempre cria; e ás vezes pela area No collo o toma a bella Panopea.
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