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LXXXVII.

Qual o reflexo lume do polido
Espelho de aço, ou de crystal fermoso,
Que do raio solar sendo ferido,
Vai ferir n'outra parte luminoso ;
E, sendo da ociosa mão movido
Pela casa do moco curioso,
Anda pelas paredes, e telhado,
Trémulo aqui, e alli dessocegado:

LXXXVIII.

Tal o vago juízo fluctuava

Do Gama preso, quando lhe lembrara
Coelho, se per caso o esperava

Na praia co' os bateis, como ordenara :
Logo secretamente lhe mandava,

Que se tornasse á frota, que deixara;

Não fosse salteado dos enganos,

Que esperava dos feros Ma'ometanos. »

LXXXIX.

Tal ha de ser, quem quer co' o dom de Marte
Imitar os illustres, e igualal-os :
Voar co'o pensamento a toda parte,
Adivinhar perigos, e evital-os :
Com militar ingenho, e sutil arte,
Intender os imigos, e enganal-os;
Crer tudo emfim ; que nunca louvarei
O capitão, que diga : « Não cuidei. »

XC.

Insiste o Malabar em tel-o preso,

Se não manda chegar a terra a armada;
Elle constante, e de ira nobre acceso,
Os ameaços seus não teme nada:

Que antes quer sobre si tomar o peso
De quanto mal a vil malicia ousada
Lhe andar armando, que pôr em ventura
A frota de seu rei, que tem segura.

XCI.

Aquella noite esteve alli detido,
E parte do outro dia; quando ordena
De se tornar ao rei: mas impedido
Foi da guarda, que tinha não pequena.
Commette-lhe o gentio outro partido,
(Temendo de seu rei castigo ou pena,
Se sabe esta malícia; a qual asinha
Saberá, se mais tempo alli o detinha) :

XCII.

Diz-lhe que mande vir toda a fazenda
Vendibil, que trazia, pera terra,

Pera que de vagar se troque, e venda;
Que quem não quer commércio, busca guerra.»
Postoque os maus propositos intenda
O Gama, que o damnado peito encerra,
Consinte; porque sabe per verdade,
Que compra co'a fazenda a liberdade.

XCIII.

Concertam-se que o negro mande dar
Embarcações idóneas, com que venha;
Que os seus bateis não quer aventurar
Onde lh'os tome o imigo, ou lh'os detenha :
Partem as almadias a buscar

Mercadoria hispana, que convenha :
Escreve a seu irmão «que lhe mandasse
A fazenda com que se resgatasse. »

XCIV.

Vem a fazenda a terra, aonde logo

A agasalhou o infame Catual :
Com ella ficam Alvaro, e Diogo,

Que a podessem vender polo que val.

Se mais que obrigação, que mando, e rogo

No peito vil, o prémio pode, e val,

Bem o mostra o gentio a quem o intenda; Pois o Gama soltou pola fazenda.

XCV.

Por ella o solta, crendo que alli tinha
Penhor bastante, d'onde recebesse
Interesse maior do que lhe vinha,
Se o capitão mais tempo detivesse.
Elle, vendo que ja lhe não convinha
Tornar a terra; porque não podesse
Ser mais retido, sendo ás naus chegado,
N' ellas estar se deixa descançado.

XCVI.

Nas naus estar se deixa vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre :
Que não se fia ja do cubiçoso

Regedor corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso

Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse, e sêde imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

XCVII.

A Polydoro mata o rei threício,

So por ficar senhor do gran' thesouro:
Entra pelo fortissimo edificio

Com a filha de Acrísio a chuva d' ouro:
Pode tanto em Tarpeia avaro vicio,
Que a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,

Do qual, quasi afogada, em pago, morre.

XCVIII.

Este rende munidas fortalezas ;

Faz traidores e falsos os amigos:

Este aos mais nobres faz fazer vilezas,

E entrega capitães aos inimigos:

Este corrompe virginaes purezas,

Sem temer de honra, ou fama alguns perigos. Este deprava ás vezes as sciencias,

Os juizos cegando, e as conciencias.

XCIX.

Este interpreta mais que sutilmente
Os textos: este faz, e desfaz leis :
Este causa os perjurios entre a gente;
E mil vezes tyrannos torna os reis.
Até os que so a Deus Omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis,
Que corrompe este incantador, e illude;
Mas não sem côr, comtudo, de virtude.

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