Qual o reflexo lume do polido Espelho de aço, ou de crystal fermoso, Que do raio solar sendo ferido, Vai ferir n'outra parte luminoso ; E, sendo da ociosa mão movido Pela casa do moço curioso, Anda pelas paredes, e telhado, Trémulo aqui, e alli dessocegado:
LXXXVIII.
Tal o vago juízo fluctuava
Do Gama preso, quando lhe lembrara Coelho, se per caso o esperava
Na praia co' os bateis, como ordenara : Logo secretamente lhe mandava,
"
Que se tornasse á frota, que deixara ; Não fosse salteado dos enganos,
Que esperava dos feros Ma'ometanos. »
Tal ha de ser, quem quer co' o dom de Marte Imitar os illustres, e igualal-os: Voar co'o pensamento a toda parte, Adivinhar perigos, e evital-os : Com militar ingenho, e sutil arte, Intender os imigos, e enganal-os ; Crer tudo emfim ; que nunca louvarei O capitão, que diga : « Não cuidei. »
Insiste o Malabar em tel-o preso,
Se não manda chegar a terra a armada; Elle constante, e de ira nobre acceso, Os ameaços seus não teme nada :
Que antes quer sobre si tomar o peso De quanto mal a vil malicia ousada Lhe andar armando, que pôr em ventura A frota de seu rei, que tem segura.
XCI.
Aquella noite esteve alli detido, E parte do outro dia; quando ordena De se tornar ao rei: mas impedido Foi da guarda, que tinha não pequena. Commette-lhe o gentio outro partido, (Temendo de seu rei castigo ou pena, Se sabe esta malícia; a qual asinha Saberá, se mais tempo alli o detinha ) :
Diz-lhe que mande vir toda a fazenda Vendibil, que trazia, pera terra,
Pera que de vagar se troque, e venda; Que quem não quer commércio, busca guerra.» Postoque os maus propositos intenda
O Gama, que o damnado peito encerra, Consinte; porque sabe per verdade, Que compra co'a fazenda a liberdade.
Concertam-se que o negro mande dar Embarcações idóneas, com que venha; Que os seus bateis não quer aventurar Onde lh'os tome o imigo, ou lh'os detenha : Partem as almadías a buscar
Mercadoria hispana, que convenha :
Escreve a seu irmão «que lhe mandasse A fazenda com que se resgatasse.»
Vem a fazenda a terra, aonde logo A agasalhou o infame Catual : Com ella ficam Alvaro, e Diogo,
Que a podessem vender polo que val.
Se mais que obrigação, que mando, e rogo
No peito vil, o prémio pode, e val, Bem o mostra o gentio a quem o intenda; Pois o Gama soltou pola fazenda.
Por ella o solta, crendo que alli tinha Penhor bastante, d'onde recebesse Interesse maior do que lhe vinha, Se o capitão mais tempo detivesse. Elle, vendo que ja lhe não convinha Tornar a terra; porque não podesse Ser mais retido, sendo ás naus chegado, N'ellas estar se deixa descançado.
Nas naus estar se deixa vagaroso, Até ver o que o tempo lhe descobre: Que não se fia ja do cubicoso Regedor corrompido e pouco nobre. Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre, Pode o vil interesse, e sêde imiga Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
A Polydoro mata o rei threício,
So por ficar senhor do gran' thesouro: Entra pelo fortissimo edificio
Com a filha de Acrísio a chuva d'ouro: Pode tanto em Tarpeia avaro vicio, Que a troco do metal luzente e louro, Entrega aos inimigos a alta torre, Do qual, quasi afogada, em pago, morre.
Este rende munidas fortalezas ; Faz traidores e falsos os amigos: Este aos mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega capitães aos inimigos :
Este corrompe virginaes purezas,
Sem temer de honra, ou fama alguns perigos.
Este deprava ás vezes as sciencias,
Os juizos cegando, e as conciencias.
Este interpreta mais que sutilmente Os textos: este faz, e desfaz leis : Este causa os perjurios entre a gente; E mil vezes tyrannos torna os reis. Até os que so a Deus Omnipotente Se dedicam, mil vezes ouvireis, Que corrompe este incantador, e illude; Mas não sem côr, comtudo, de virtude.
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