Vão os annos descendo, e ja do estio Ha pouco que passar até o outono: A fortuna me faz o ingenho frio, Do qual ja não me jacto, nem me abono. Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento, e eterno sono: Mas, tu me dá que cumpra, o' gran' rainha Das Musas, co'o que quero á nação minha.
Cantava a bella deusa, que viriam Do Tejo, pelo mar, que o Gama abrira, Armadas, que as ribeiras venceriam, Per onde o Oceano índico suspira : E que os gentios rêis, que não dariam A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira Provariam do braço duro e forte, Até render-se a elle, ou logo á morte.
Cantava d'um, que tem nos Malabares Do summo sacerdócio a dignidade, Que so por não quebrar co'os singulares Barões os nós, que dera d'amizade, Sofrerá suas cidades, e logares Com ferro, incendios, ira, e crueldade Ver destruir do Samorim potente, Que taes odios terá co'a nova gente.
E canta como la se embarcaria Em Belem o remédio d'este dano, Sem saber o que em si ao mar traria O gran' Pacheco, Achilles lusitano. 0 peso sentirão, quando entraria, O curvo lenho, e o férvido Oceano,
Quando mais n' agua os troncos, que gemerem, Contra sua natureza se metterem.
Mas ja chegado aos fins orientaes, E deixando em ajuda do gentio Rei de Cochim com poucos naturaes Nos braços do salgado e curvo rio; Desbaratará os Naires infernaes No passo Cambalão, tornando frio D'espanto o ardor immenso do Oriente, Que verá tanto obrar tam pouca gente.
Chamará o Samorim mais gente nova; Virão rêis de Bipur, e de Tanor Das serras de Narsinga, que alta prova Estarão promettendo a seu senhor : Fará que todo o Naire emfim se mova, Que entre Calecut jaz, e Cananor, D'ambas as leis imigas, pera a guerra, Mouros per mar, gentios pela terra.
E todos outra vez desbaratando, Per terra e mar, o gran' Pacheco ousado A grande multidão, que irá matando, A todo o Malabar terá admirado. Commetterá outra vez, não dilatando O gentio os combates apressado, Injuriando os seus, fazendo votos. Em vão aos deuses vãos, surdos e immotos.
XVI.
Ja não defenderá somente os passos, Mas queimar-lhe-ha logares, templos, casas : Acceso de ira o cão, não vendo lassos Aquelles que as cidades fazem rasas, Fará que os seus, da vida pouco escassos, Commettam o Pacheco, que tem asas, Per dous passos n' um tempo : mas voando D'um n'outro, tudo irá desbaratando.
Virá alli o Samorim; porque em pessoa Veja a batalha, e os seus esforce e anime : Mas um tiro, que com zunido voa, De sangue o tingirá no andor sublime. Ja não verá remédio, ou manha boa, Nem força, que o Pacheco muito estime : Inventará traições, e vãos venenos; Mas sempre (o ceo querendo) fará menos.
Que tornará a vez sétima (cantava) Pelejar co' o invicto e forte Luso, A quem nenhum trabalho pesa, e aggrava, Mas comtudo este so o fará confuso : Trará pera a batalha horrenda e brava, Machinas de madeiros fóra de uso,
Pera lhe abalroar as caravelas ; Que até-li vão lhe fôra commettelas.
Pela agua levará serras de fogo Pera abrasar-lhe quanta armada tenha : Mas a militar arte, e ingenho, logo Fará ser vã a braveza com que venha. Nenhum claro Barão no marcio jogo, Que nas azas da Fama se sustenha, Chega a este, que a palma a todos toma : E perdoe-me a illustre Grecia, ou Roma.
Porque tantas batalhas sustentadas Com muito pouco mais de cem soldados, Com tantas manhas, e artes inventadas, Tantos cães não imbelles profligados; Ou parecerão fábulas sonhadas, Ou que os celestes coros invocados Descerão a ajudal-o, e lhe darão Esforço, força, ardil e coração.
XXI.
Aquelle que nos campos marathonios O gran' poder de Dário estrue, e rende; Ou quem com quatro mil Lacedemonios O passo de Thermopylas defende; Nem o mancebo Cocles dos Ausonios, Que com todo o poder tusco contende Em defensa da ponte, ou Quinto Fabio, Foi como este na guerra forte e sabio.
Mas n' este passo a nympha o som canoro Abaixando, fez rouco e entristecido, Cantando em baixa voz, involta em choro, O grande esforço mal agradecido. «O' Belizario (disse) que no coro Das Musas serás sempre engrandecido; Se em ti viste abatido o bravo Marte, Aqui tens com quem podes consolarte!
« Aqui tens companheiro, assi nos feitos, Como no galardão injusto e duro : Em ti, e n'elle veremos altos peitos A baixo estado vir, humilde e escuro : Morrer nos hospitaes, em pobres leitos, Os que ao rei, e á lei servem de muro. Isto fazem os rêis, cuja vontade Manda mais que a justiça, e que a verdade.
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