O recado, que trazem, é de amigos; Mas debaixo o veneno vem coberto; Que os pensamentos eram de inimigos, Segundo foi o engano descoberto. Oh grandes e gravissimos perigos! Oh caminho da vida nunca certo! Que aonde a gente põe sua esperança, Tenha a vida tam pouca segurança !
No mar tanta tormenta, e tanto dano; Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano; Tanta necessidade aborrecida ! Onde pode acolher-se um fraco humano? Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indine o ceo sereno Contra um bicho da terra tam pequeno?
Ja n'este tempo o lucido planeta, Que as horas vai do dia distinguindo, Chegava á desejada e lenta meta,
A luz celeste ás gentes encobrindo ; E da casa marítima secreta
Lhe estava o deus nocturno a porta abrindo; Quando as ínfidas gentes se chegaram A's naus, que pouco havia que ancoraram.
D'entre elles um, que traz encommendado O mortífero engano, assi dizia:
Capitão valeroso, que cortado
Tens de Neptuno o reino, e salsa via; O rei, que manda esta ilha, alvoroçado Da vinda tua, tem tanta alegria, Que não deseja mais que agasalhar-te, Ver-te, e do necessario reformar-te.
III.
«E porque está em extremo desejoso De te ver (como cousa nomeada)
Te roga, que de nada receioso, Entres a barra tu, com toda a armada: E porque do caminho trabalhoso Trarás a gente debil e cansada, Diz que na terra podes reformal-a; Que a natureza obriga a desejal-a.
Iv.
«E se buscando vas mercadoria, Que produze o aurífero Levante, Canella, cravo, ardente especiaria, Ou droga salutífera e prestante; Ou se queres luzente pedraria, O rubi fino, o rígido diamante; D' aqui levarás tudo tam sobejo, Com que faças o fim a teu desejo.
Ao messageiro o capitão responde, (As palavras do rei agradecendo )
E diz, « que porque o sol no mar se esconde, Não entra pera dentro, obedecendo: Porêm, que como a luz mostrar per onde Va sem perigo a frota, não temendo, Cumprirá sem receio seu mandado; Que a mais, por tal senhor, stá obrigado. »
Pergunta-lhe despois, «se estão na terra Christãos? (como o piloto lhe dizia):
O messageiro astuto, que não erra,
Lhe diz, «que a mais da gente em Christo cria. » D' esta sorte do peito lhe desterra
Toda a suspeita, e cauta phantesia : Per onde o capitão seguramente Se fia da infiel e falsa gente.
VII.
E de alguns, que trazia condemnados Por culpas, e por feitos vergonhosos; Porque podessem ser aventurados Em casos d'esta sorte duvidosos, Manda dous mais sagazes ensaiados; Porque notem dos Mouros enganosos A cidade, e poder; e porque vejam Os christãos, que so tanto ver desejam.
E per estes ao rei presentes manda; Porque a boa vontade, que mostrava, Tenha firme, segura, limpa e branda; A qual, bem ao contrario, em tudo estava. Ja a companhia perfida e nefanda, Das naus se despedia, e o mar cortava : Foram com gestos ledos e fingidos, Os dous da frota em terra recebidos.
E despois que ao rei apresentaram, Co' o recado, os presentes que traziam A cidade correram, e notaram Muito menos d'aquillo que queriam; Que os Mouros cautelosos se guardaram De lhe mostrarem tudo o que pediam : Que onde reina a malicia, está o receio, Que a faz imaginar no peito alheio.
X.
Mas aquelle, que sempre a mocidade Tem no rosto perpetua, e foi nascido De duas mães ; que urdia a falsidade, Por ver o navegante destruido; Estava n'uma casa da cidade, Com rosto humano, e habito fingido, Mostrando-se christão; e fabricava Um altar sumptuoso, que adorava.
Alli tinha, em retrato afigurada, Do alto e Sancto Espiritu a pintura, A candida pombinha debuxada Sobre a unica phenix Virgem pura : A companhia santa está pintada Dos doze, tam torvados na figura, Como os que, so das linguas que cahiram De fogo, varias linguas referiram.
« AnteriorContinuar » |