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CV.

O recado, que trazem, é de amigos;
Mas debaixo o veneno vem coberto;
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Oh grandes e gravissimos perigos!
Oh caminho da vida nunca certo!
Que aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tam pouca segurança !

CVI.

No mar tanta tormenta, e tanto dano;
Tantas vezes a morte apercebida!

Na terra tanta guerra, tanto engano;
Tanta necessidade aborrecida !
Onde pode acolher-se um fraco humano?
Onde terá segura a curta vida,

Que não se arme, e se indine o ceo sereno
Contra um bicho da terra tam pequeno?

CANTO SEGUNDO.

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I.

Ja n'este tempo o lucido planeta,
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava á desejada e lenta meta,

A luz celeste ás gentes encobrindo ;
E da casa marítima secreta

Lhe estava o deus nocturno a porta abrindo;
Quando as ínfidas gentes se chegaram
A's naus, que pouco havia que ancoraram.

II.

D'entre elles um, que traz encommendado O mortífero engano, assi dizia:

Capitão valeroso, que cortado

Tens de Neptuno o reino, e salsa via;
O rei, que manda esta ilha, alvoroçado
Da vinda tua, tem tanta alegria,
Que não deseja mais que agasalhar-te,
Ver-te, e do necessario reformar-te.

III.

«E porque está em extremo desejoso
De te ver (como cousa nomeada)

Te roga, que de nada receioso,
Entres a barra tu, com toda a armada:
E
porque do caminho trabalhoso
Trarás a gente debil e cansada,
Diz que na terra podes reformal-a;
Que a natureza obriga a desejal-a.

Iv.

«E se buscando vas mercadoria,
Que produze o aurífero Levante,
Canella, cravo, ardente especiaria,
Ou droga salutífera e prestante;
Ou se queres luzente pedraria,
O rubi fino, o rígido diamante;
D' aqui levarás tudo tam sobejo,
Com que faças o fim a teu desejo.

V.

Ao messageiro o capitão responde,
(As palavras do rei agradecendo )

E diz, « que porque o sol no mar se esconde,
Não entra pera dentro, obedecendo:
Porêm, que como a luz mostrar per onde
Va sem perigo a frota, não temendo,
Cumprirá sem receio seu mandado;
Que a mais, por tal senhor, stá obrigado. »

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VI.

Pergunta-lhe despois, «se estão na terra
Christãos? (como o piloto lhe dizia):

O messageiro astuto, que não erra,

Lhe diz, «que a mais da gente em Christo cria. »
D' esta sorte do peito lhe desterra

Toda a suspeita, e cauta phantesia :
Per onde o capitão seguramente
Se fia da infiel e falsa gente.

VII.

E de alguns, que trazia condemnados
Por culpas, e por feitos vergonhosos;
Porque podessem ser aventurados
Em casos d'esta sorte duvidosos,
Manda dous mais sagazes ensaiados;
Porque notem dos Mouros enganosos
A cidade, e poder; e porque vejam
Os christãos, que so tanto ver desejam.

VIII.

E per estes ao rei presentes manda;
Porque a boa vontade, que mostrava,
Tenha firme, segura, limpa e branda;
A qual, bem ao contrario, em tudo estava.
Ja a companhia perfida e nefanda,
Das naus se despedia, e o mar cortava :
Foram com gestos ledos e fingidos,
Os dous da frota em terra recebidos.

IX.

E despois que ao rei apresentaram,
Co' o recado, os presentes que traziam
A cidade correram, e notaram
Muito menos d'aquillo que queriam;
Que os Mouros cautelosos se guardaram
De lhe mostrarem tudo o que pediam :
Que onde reina a malicia, está o receio,
Que a faz imaginar no peito alheio.

X.

Mas aquelle, que sempre a mocidade
Tem no rosto perpetua, e foi nascido
De duas mães ; que urdia a falsidade,
Por ver o navegante destruido;
Estava n'uma casa da cidade,
Com rosto humano, e habito fingido,
Mostrando-se christão; e fabricava
Um altar sumptuoso, que adorava.

XI.

Alli tinha, em retrato afigurada,
Do alto e Sancto Espiritu a pintura,
A candida pombinha debuxada
Sobre a unica phenix Virgem pura :
A companhia santa está pintada
Dos doze, tam torvados na figura,
Como os que, so das linguas que cahiram
De fogo, varias linguas referiram.

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