Aqui os dous companheiros conduzidos Onde, com este engano, Baccho estava, Poem em terra os giolhos, e os sentidos N' aquelle Deus, que o mundo governava. Os cheiros excellentes, produzidos Na Panchaia odorífera, queimava O Thyoneu; e assi, per derradeiro, O falso deus adora o verdadeiro.
Aqui foram de noite agasalhados, Com todo o bom e honesto tractamento,
Os dous christãos; não vendo que enganados Os tinha o falso e sancto fingimento.
Mas assi como os raios espalhados
Do sol foram no mundo, e n'um momento, Appareceu no rubido horisonte
Da moça de Titão a roxa fronte :
Tornam da terra os Mouros co'o recado Do rei, pera que entrassem, e comsigo Os dous, que o capitão tinha mandado, A quem se o rei mostrou sincero amigo : E sendo o Portuguez certificado
De não haver receio de perigo,
E que gente de Christo em terra havia, Dentro no salso rio entrar queria.
Dizem-lhe os que mandou, « que em terra viram Sacras aras, e sacerdote santo;
Que alli se agasalharam, e dormiram, Em quanto a luz cobriu o escuro manto; E que no rei, e gentes não sentiram Senão contentamento, e gosto tanto, Que não podia certo haver suspeita N'uma mostra tam clara, e tam perfeita. »
Com isto o nobre Gama recebia Alegremente os Mouros, que subiam : Que levemente um animo se fia
De mostras, que tam certas pareciam. A nau da gente perfida se enchia Deixando a bordo os barcos, que traziam : Alegres vinham todos; porque creem Que a presa desejada certa teem.
Na terra cautamente apparelhavam Armas, e munições; que como vissem Que no rio os navios ancoravam, N'elles ousadamente se subissem: E com esta traição determinavam Que os de Luso de todo destruissem, E que incautos pagassem d'este geito, O mal, que em Moçambique tinham feito.
As ancoras tenaces vão levando, Com a nautica grita costumada; Da proa as vélas sos ao vento dando, Inclinam pera a barra abalizada. Mas a linda Erycina, que guardando Andava sempre a gente assinalada, Vendo a cilada grande, e tam secreta, Voa, do ceo ao mar, como uma seta.
Convoca as alvas filhas de Nereu, Com toda a mais cerulea companhia; Que, porque no salgado mar nasceu, Das aguas o poder lhe obedecia : E propondo-lhe a causa a que desceu, Com todos junctamente se partia,
Pera estorvar que a armada não chegasse Aonde pera sempre se acabasse.
XX.
Ja na agua erguendo vão com grande pressa, Com as argenteas caudas, branca escuma; Doto co'o peito corta, e atravessa
Com mais furor o mar do que costuma. Salta Nise, Nerine se arremessa
Per cima da agua crespa, em força suma : Abrem caminho as ondas encurvadas, De temor das Nereidas apressadas.
Nos hombros de um tritão, com gesto acceso,
Vai a linda Dione furiosa:
Não sente, quem a leva, o doce peso, De suberbo, com carga tam fermosa : Ja chegam perto d'onde o vento teso Enche as vélas da frota bellicosa; Repartem-se, e rodeiam n' esse instante As naus ligeiras, que íam per diante.
Põe-se a deusa, com outras, em direito Da proa capitaina ; e alli fechando
O caminho da barra, estão de geito,
Que em vão assopra o vento, a véla inchando : Poem no madeiro duro o brando peito, Pera detraz a forte nau forçando; Outras, em derredor, levando-a estavam, E da barra inimiga a desviavam.
Quaes pera a cova as próvidas formigas, Levando o peso grande accommodado, As forças exercitam, de inimigas Do inimigo hinverno congelado; Alli são seus trabalhos, e fadigas; Alli mostram vigor nunca esperado : Taes andavam as nymphas estorvando, A' gente portugueza, o fim nefando.
Torna pera detraz a nau forçada, A pezar dos que leva, que gritando Maream vélas; ferve a gente irada, O leme a um bordo, e a outro atravessando: O mestre astuto em vão da poppa brada, Vendo como diante ameaçando
Os estava um marítimo penedo,
Que de quebrar-lhe a nau lhe mette medo.
A medonha celeuma se alevanta
No rudo marinheiro, que trabalha;
O grande estrondo a maura gente espanta, Como se vissem horrida batalha :
Não sabem a razão de furia tanta;
Não sabem, n' esta pressa, quem lhe valha; Cuidam que seus enganos são sabidos, E que hão de ser, por isso, aqui punidos.
Eil-os subitamente se lançavam A seus bateis veloces, que traziam ; Outros em cima o mar alevantavam; Saltando n' agua, e a nado se acolhiam : De um bordo, e d' outro subito saltavam; Que o mêdo os compellia do que viam; Que antes querem ao mar aventurar-se, Que nas mãos inimigas entregar-se.
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