III.
Promptos estavam todos escuitando O que o sublime Gama contaria ; Quando, despois de um pouco estar cuidando, Alevantando o rosto, assi dizia :
« Mandas-me, o' rei, que conte declarando De minha gente a gran' genealogia : Não me mandas contar estranha historia; Mas mandas-me louvar dos meus a gloria.
Que outrem possa louvar esforço alheio, Cousa é que se costuma, e se deseja; Mas louvar os meus proprios, arreceio Que louvor tam suspeito mal me esteja: E pera dizer tudo temo, e creio Que qualquer longo tempo curto seja : Mas, pois o mandas, tudo se te deve; Irei contra o que devo, e serei breve.
« Alem d'isso, o que a tudo emfim me obriga, É não poder mentir no que disser;
Porque, de feitos taes, por mais que diga, Mais me ha de ficar inda por dizer: Mas, porque n' isto a ordem leve, e siga, (Segundo o que desejas de saber) Primeiro tractarei da larga terra; Despois direi da sanguinosa guerra.
<< Entre a zona, que o cancro senhorea,
«
Meta septentrional do sol luzente;
E aquella, que por fria se arrecea Tanto, como a do meio por ardente, Jaz a suberba Europa; a quem rodea, Pela parte do Arcturo e do Occidente, Com suas salsas ondas, o Oceano; E, pela Austral, o mar Mediterrano.
VII.
«Da parte d'onde o dia vem nascendo, Com Asia se avisinha; mas o rio, Que dos montes Rhipheios vai correndo Na alagoa Meótis, curvo e frio,
As divide e o mar, que fero e horrendo Viu dos Gregos o irado senhorio; Onde agora, de Troia triumphante,
Não ve mais que a memoria, o navegante.
« La onde mais debaixo está do polo, Os montes hyperbóreos apparecem ; E aquelles, onde sempre sopra Eolo, E, co' o nome dos sopros, se ennobrecem. Aqui tam pouca força teem de Apolo Os raios, que no mundo resplandecem, Que a neve está contino pelos montes, Gelado o mar, geladas sempre as fontes.
Aqui dos Scythas grande cantidade Vivem, que antiguamente grande guerra Tiveram sobre a humana antiguidade, Co' os que tinham então a egypcia terra : Mas quem tam fóra estava da verdade, (Ja que o juizo humano tanto erra) Pera que do mais certo se informara, Ao campo damasceno o perguntara.
«
Agora n'estas partes se nomea A Lappia fria, a inculta Noroega; Escandinavia ilha, que se arrea Das victorias, que Italia não lhe nega. Aqui, em quanto as aguas não refrea O congelado hinverno, se navega Um braço do sarmático Oceano, Pelo Brusio, Suecio, e frio Dano.
« Entre este mar, e o Tánais vive estranha Gente, Ruthenos, Moscos, e Livonios, Sarmátas outro tempo; e na montanha Hercyna, os Marcomanos são Polonios. Sujeitos ao imperio de Alemanha São Saxones, Bohemios, e Pannonios; E outras varias nações, que o Rheno frio Lava, e o Danubio', Amásis, e Albis rio.
Entre o remoto Istro, e o claro estreito Aonde Helle deixou co' o nome a vida, Estão os Thraces de robusto peito, Do fero Marte patria tam querida; Onde co' o Hemo, o Rhodope sujeito Ao Othomano está, que sumettida Byzancio tem a seu serviço indino: Boa injuria do grande Constantino!
« Logo de Macedónia estão as gentes, A quem lava do A'xio a agua fria : E vós tambem, o' terras excellentes Nos costumes, ingenhos e ousadia ; Que creastes os peitos eloquentes, E os juizos de alta phantesia,
Com quem tu, clara Grecia, o ceo penetras, E não menos per armas, que per letras.
Logo os Dálmatas vivem; e no seio, Onde Antenor ja muros levantou,
A suberba Veneza está no meio
Das aguas, que tam baixa começou. Da terra, um braço vem ao mar, que cheio De esforço, nações varias sujeitou ;
Braço forte de gente sublimada
Não menos nos ingenhos, que na espada.
Emtôrno o cerca o reino neptunino, Co'os muros naturaes, per outra parte: Pelo meio o divide o Apennino, Que tam illustre fez o patrio Marte: Mas despois que o Porteiro tem divino, Perdendo o esforço veio, e bellica arte : Pobre está ja de antigua potestade : Tanto Deus se contenta de humildade!
« Gallia alli se verá, que nomeada Co' os cesáreos triumphos foi no mundo, Que do Séquana, e Rhódano é regada, E do Garumna frio, e Rheno fundo : Logo os montes da nympha sepultada Pyrene, se alevantam, que (segundo At iguidades contam) quando arderam, Rios de ouro, e de prata então correram.
Eis-aqui se descobre a nobre Hespanha, Como cabeça alli de Europa toda; Em cujo senhorio, e gloria estranha Muitas voltas tem dado a fatal roda: Mas nunca poderá com força, ou manha, A fortuna inquieta pôr-lhe noda, Que lh'a não tire o esforço e ousadia Dos bellicosos peitos, que em si cria.
« AnteriorContinuar » |