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casa e a todos mandou dar agua ás mãos pera as refrescarem : lavadas as mãos, lhes mandou trazer agua, e figos, com outras fruitas da terra, de que todos comeram e beberam. Acabada a merenda, começou el-rei de fallar com Vasco da Gama, pelo seu lingua tam alto que o ouviam todos os que estavam na casa; e nas perguntas que lhe fez, vendo Vasco da Gama que começava d'entrar em negocios, alêm do que lhe ja perguntara, de seu caminho e trabalhos da longa viajem, disse per Fernan' Martins seu lingua, ao lingua del-rei, «que entre os rèis christãos se não acostumava tomarem uns dos outros embaixadas senão em particular; e que aquelle costume lhe pedia que quizesse ter n' aquella que lhe trazia del-rei de Portugal seu senhor, tam desejoso de sua amizade, assi elle, como seus antecessores, que havia mais de sessenta annos que trabalhavam no descobrimento d'esta navegação; athé que Deus lhe fizera a elle mercê de vir ao cabo d'ella : do que se tinha polo mais bemaventurado homem de todo o mundo. »>

El-rei tomou bem o que lhe Vasco da Gama fez dizer; e logo mandou que elle e Fernan' Martins, se fossem pera outra camara, que estava juncto d'aquella, seguindo logo traz elles. Na camara havia um catel muito mais rico que o de fóra, em que se el-rei lançou; e sem haver n' ella mais gente que o Bramane-mor, e o que dava o betel a el-rei, e um seu veador-da-fazenda, fez dizer pelo seu lingua a Vasco da Gama, «que estava em logar em que livremente podia dar sua embaixada ; que em tudo se lhe manteria bom segredo, polos que estavam presentes serem do seu conselho secreto, e pessoas de que elle confiava todos seus negocios e fazenda.» Vasco da Gama, pelo seu lingua Fernan' Martins, propoz o a que vinha, e de quam longe, e per mandado de quem; e que o fim de sua embaixada era querer el-rei D. Manuel de Portugal, seu senhor, amizade com um tam poderoso e tam nomeado rei como elle era per todas as partes do mundo; e que pera signal d'isso lhe trazia cartas suas de crença, que lhe apresentaria quando o houvesse por bem.

El-rei folgou muito com o que lhe disse Vasco da Gama, offerecendo-se a tudo o que lhe de seu reino cumprisse por serviço d'el-rei de Portugal, a quem elle d'alli per diante queria

ter por irmão: porque não poderia ser amizade fingida a que tanto tempo havia que buscava, e com tantos trabalhos e perigos de seus vassallos e sujeitos, como elle dizia.

Passados tres dias, voltou o Gama (guiado do Catual) á presença d'el-rei. Entregou-lhe as cartas, e um presente, do qual o Samorim mostrou fazer pouco caso. O Gama disse - lhe: << que não estranhasse ser aquella dadiva mui desproporcionada á magestade d'um tal monarcha; porque o motivo de ser tam limitada manava da incerteza, que el-rei D. Manuel tinha do exito feliz d'aquella sua viajem; mas, se esperava mor utilidade, considerasse quanta podia resultar ao seu reino, se a elle viessem de Portugal cada anno muitas naus carregadas de preciosas mercadorias. Per ultimo rogou-lhe não communicasse o segredo das cartas de seu rei com os Mouros, que habitavam em Calecut. Ja n'esse tempo tinha sabido de Monçaide que os taes Mouros maquinavam sua destruição.

Em tanto faziam elles entre si frequentes congressos, em ordem a divertir os nossos navegantes da graça do rei. Corrompiam a este fim com dadivas os familiares do mesmo rei. Publicavam que o Gama era um pirata, que em todas as partes d'aquellas regiões onde fôra recebido com pretexto de hospitalidade, deixara vestigios de latrocinios. Que se este pequeno fogo no principio não fosse extincto, poderia despois fazer grandissimo damno a todo aquelle reino.

Fomentavam estas diligencias contra os Portuguezes, não so por causa do odio, que professam ao nome christão; mas porque temiam, que da vinda d'estes áquellas partes, resultasse o seu exterminio; ou, quando menos, um notavel prejuizo ao seu commercio. El-rei, que d'elle tirava grandes interesses, e era de genio vario e mudavel, tendo noticia das taes maquinações, vacillava na sua resolução. Receiava incorrer na nota de perfidia, se lhe entregava em prisão os nossos; e, se os deixava ir livremente, temia alienar da sua graça os mesmos Mouros. Um d'elles, reputado mais eloquente, fez uma larga oração dos inconvenientes, que podia ter em fiar-se das palavras do Gama. Este, informado de taes operações, e de que n'ellas tinha parte o Catual, resolveu-se a sair de casa um dia de madrugada, e ir em direitura a Pandarane. Presentiram os Mouros esta ausen

cia, e foram logo pedir a el-rei que désse ordem a impedir a fuga. Elle, por condescender, commetteu a diligencia ao Catual. Partiu este pera tal effeito a Pandarane, e conduziu outra vez o Gama á sua casa, onde, com mor cautela, o tinha como preso; se bem dissimulava ser um modo de obsequio.

N'este tempo rogava-lhe que mandasse aos Portuguezes da sua guarda se retirassem ás naus, e que estas chegassem mais juncto á terra, e d'ellas lhe entregasse as vélas, e todo o mais apparelho; porque d'esta maneira deixaria livre ao rei de toda a suspeita, que tinha concebido, de que não arribara áquelle porto com o pretexto que publicava. Não consentiu Vasco da Gama em tal proposta. E, per ultimo, concordaram ambos, que mandaria vir a terra a fazenda que trazia, com algumas pessoas que assistissem á sua venda. Isto assim ordenado, foi posto o Gama em liberdade, e retirou-se ás naus.

Mandou logo dous feitores a Calecut com as mercadorias; porém os Mouros impediam sua venda; e, per negociado dos mesmos, passado algum tempo, mandou o Samorim prender os taes feitores, e pôr em custodia a fazenda. Requereu o Gama que lh'a mandasse restituir, e soltar os dous Portuguezes; mas não se differiu a esta supplica.

Em tanto Monçaide, que tinha passo livre pera ir fallar ao Gama, lhe revelou que o intento dos Mouros era esperar chegassem áquelle porto as naus de Meca, que costumavam vir a Calecut cada anno, pera que estas (sendo superiores em número e forças ás nossas) as surprendessem.

O Gama, movido de tal noticia, não tendo outro obstaculo pera partir, que recuperar a fazenda, e os dous feitores, usou pera este effeito de um estratagema; e foi, que mandou levar ancora, e pôr as naus um pouco ao largo, a tempo que n'ellas se achavam certos mercantes ricos de Calecut, a fim de que, presumindo as mulheres, e filhos dos taes Mouros, que fazia represalia nos mesmos á sua instancia, mandasse el-rei pôr em liberdade os feitores com a fazenda; como succedeu. E enviando-os ás naus per alguns dos seus domesticos Malabares, foram n'ellas retidos alguns d'elles, que vieram ao reino; e os outros com os mercantes deixados ir livremente. Monçaide se offereceu pera vir em companhia dos nossos; o que poz em

execução; e chegando ao reino, se bautizou, e acabou seus dias de bom catholico.

Saiu a armada de Calecut no começo de outubro; e antes de tomar terra em umas pequenas ilhas, que estão contiguas, foi acommettida de vinte navios; sete dos quaes poz em fugida, e um tomou. Era essa frota de um famoso pirata chamado Timoja; o qual tinha posto em terror todos aquelles mares. D'alli passou a Anquidiva, que é uma ilha distante duas leguas d'aquelle continente, onde fez provisão de agua, e mantimento.

Partiu de Anquidiva em cinco de outubro em direitura a Melinde, em cuja viajem gastou quatro mezes; pois em dous de fevereiro avistou a primeira terra, que foi a de Magadaxo, na costa de Ethiopia, 115 leguas abaixo de Melinde : onde tendo o Gama noticia que a tal terra era possuída de Mouros, mandou disparar a artilheria contra os muros, OS quaes em boa parte ficaram demolidos. Chegou a Melinde em 7 do mesmo mez; porêm n'esse porto não se dilatou mais que cinco dias, em os quaes, porque a nau de Paulo da Gama fazia muita agua, seu irmão a mandou queimar, e dividiu a gente pelas outras duas, passando á sua o dito Paulo da Gama.

Saindo de Melinde, em 18 do mencionado mez, aos 28 se achou diante da ilha de Zanzibar, a qual jaz cinco leguas desapegada da terra firme da Ethiopia. O governador d'essa ilha, bem que Mouro, tractou humanamente ao Gama.

D'ahi partiu no primeiro de março; e ainda que tomou terra na ilha de San' Jorge, uma das de Moçambique, passou sem fallar ao Xeque, e chegou á aguada de San' Braz, onde se proveu de agua, e lenha.

Aos 20 do dito mez dobrou o cabo de Boa-Esperança com bom tempo; mas despois sobreveio um temporal, que obrigou a separar-se uma nau da outra. A de Nicolau Coelho chegou a Cascaes em direitura em 10 de julho de 1499; e d'elle soube el-rei as primeiras noticias d' esta viajem : a de Vasco da Gama foi abordar á ilha de Sanct' Iago, em 25 de abril. D'aqui, porque seu irmão Paulo da Gama vinha muito enfermo, e a sua nau fazia demasiada agua, foi-lhe forçoso demandar a ilha Terceira, onde se dilatou alguns dias pera assistir a seu irmão, que ahi falleceu. E embarcando em uma caravela,

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chegou a Lisboa a 30 de agosto do mesmo anno; havendo ja dous, e outros tantos mezes, que tinha saído d' aquelle porto com 148 homens, dos quaes chegaram vivos ao reino cincoenta e cinco somente. El-rei D. Manuel deu a Vasco da Gama o titulo de Dom pera elle, e seus descendentes; e despois o fez Almirante da India, e conde da Vidigueira de juro. A Nicolau Coelho fez fidalgo da sua casa; e a cadaum dos mais fez varias mercês segundo a calidade de seu serviço, e pessoa.

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