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PROLOGO.

O principal motivo, que me decidiu a emprender este trabalho, foi o querer eu offerecer, tanto aos meus conterraneos, como aos estrangeiros estudiosos, e amantes de Camões, uma edição limpa d'alguns erros, que afeiam as precedentes; ajudando-me, para isso, das notas, e observações dos editores, que as prepararam, e da lição dos classicos portuguezes coevos ao nosso Epico, em cujas obras se acha estabelecida a verdadeira pronuncia do mesmo Epico; pronuncia que tam viciada corre nas edições que, de seu immortal poema, saíram á luz. E ora, se os editores de nossos antiguos authores, tanto s'esmeraram em conservar-lhes escrupulosos as palavras orthographadas tosca e irregularmente, porque alterâmos nós a pronuncia de Camões, enchendo assim os seus bellissimos versos de amphibologias, e de contracções escabrosas?

Puz particular desvelo em so me servir, para este trabalho, d'edições publicadas per homens de notorio saber e auctoridade, dando de mão ás que tiveram por alvo o interesse; visto que,

similhantes edições, sobre estarem erradissimas, não apresentam uma so lição digna de aprovei

tar-se.

Tenho por excusado inculcar aos intelligentes o apuro, que empreguei n' esta edição; so lhes rogo que, se algumas falhas lhe acharem, as desculpem; pois é quasi impossibil alcançar-se cabal perfeição em obras d'este genero,

No que diz respeito á orthographia, como inda não temos uma fixa, segui a que me pareceu accommodar-se melhor á ethymologia, e á recta pronuncia dos Escriptores quinhentistas.

Quanto ás notas, escrevi somente aquellas que julguei indispensaveis á intelligencia d'alguns logares duvidosos ou difficeis. As pessoas, que desejarem explicação mais ampla, poderão recorrer ao index dos nomes proprios, que João Franco Barreto annexou aos Lusiadas, ou ao Diccionario da Fabula, composto em francez per Chompré, e traduzido em portuguez per Pedro José da Fonseca.

VIDA DE CAMoes.

A opinião mais probabil acerca da familia de Camões é que Vasco Pires de Camões, estando el-rei D. Henrique II de Castella em guerra com D. Fernando, rei de Portugal, passou de Galliza a este reino, onde o mesmo rei lhe deu muitas terras, e rendas em recompensa das que deixara; mas perdeu depois a mor parte d'ellas, por seguir a facção da rainha D. Leonor contra el-rei D. João I.

Vasco Pires casou com uma filha de Gonçalo Tenreiro, capitão-mor das armadas portuguezas; de cujo matrimonio nasceram Gonçalo, João, e Constança; os quaes brotaram descendentes illustres.

Todavia o nosso Poeta procede do segundo-genito João Vaz de Camões; o qual, per suas virtudes militares em serviço d' elrei D. Afonso V, conseguiu o titulo (assás honorífico n' aquelle tempo) de seu vassallo. Fundou casa em Coimbra, e no claustro da cathedral da mesma cidade, sumptuoso monumento. Houve por mulher Inez Gomes da Silva; e d'ella a Antão Vaz de Camões, que esposou Guiomar Vaz da Gama. D'estes nasceu Simão Vaz de Camões; o qual passando á India por capitão d' uma nau, e salvo d'um naufragio em as costas de Goa, falleceu depois n'essa cidade. Contrahiu nupcias com D. Anna de Sá. pessoa nobre, natural de Sanctarem, e teve d'ella Luis de Camões, em o qual (por viver celibatario) se apagou esta linhagem. Elle nasceu em Lisboa no anno de 1524.

Que o nosso Poeta assistisse alguns annos da sua adolescencia na universidade de Coimbra (erecța então de novo) sob pretexto d'estudos, conjectura é deduzida da sua canção IV, a qual assim principia:

Vão as serenas aguas

Do Mondego decendo, etc.

N'esta flórida terra

Leda, fresca e serena,

Ledo e contente pera mi vivia.

Findos os estudos, e restituído a Lisboa, affeiçoou-se a certa dama; e essa affeição deu motivo a que o desterrassem da côrte. Pensam alguns que o tal desterro foi na villa de Sanctarem, fundados na elegia que começa:

O sulmonense Ovidio desterrado, etc.

Onde chora a saudade da côrte, e onde diz que estava vendo o Tejo, e as côncavas barcas, que rasgavam sua corrente :

Vejo o puro, suave e brando Tejo,

Com as côncavas barcas, que nadando,
Vão pondo em doce effeito seu desejo.

Achando-se pois impossibilitado de volver a Lisboa, resolveu ir servir a Ceuta, em cuja praça militou e assistiu algum tempo, como consta da elegia que começa:

Aquelle que de amor descomedido, etc.

Na qual diz:

Subo-me ao monte, que Hercules Thebano
Do altissimo Calpe dividiu,

Dando caminho ao mar Mediterrano, etc.

No Estreito de Gibraltar, pelejando denodado juncto a seu pae, que commandava uma das naus, perdeu o olho direito, como elle toca na canção que principia :

Vinde ca meu tam certo secretario, etc.

Havendo passado algum tempo no militar exercicio, tornou a Lisboa, persuadindo-se obteria algum premio polo dito exercicio; mas perdidas de todo as esperanças a esse respeito, decidiu-se a passar á India; e o fez na occasião que Fernando

Alvares Cabral foi nomeado capitão-mor de quatro naus; as quaes partiram para a mesma India em março de 1553. Embarcou Camões com elle na capitania; e esta, após um grande temporal, em que se perderam as outras tres, surgiu em Goa no fim de septembro do dito anno, governando aquelle estado D. Afonso de Noronha.

So pouco mais d'um mez se deteve o nosso Poeta em Goa por quanto, no de novembro seguinte, tornou a embarcar com o vice-rei em uma poderosa armada, que foi soccorrer os rêis de Cochim, e de Porcá, aos quaes o de Chembé tinha tomado algumas ilhas. D'essa expedição, e dos prosperos successos d'ella, trata na elegia que começa:

O poeta Simónides fallando, etc.

Vôlto a Goa no comêço do anno 1555, colheu a noticia de que em Lisboa, no dia 2 de janeiro de 1554 morrera o principe D. João, pae d'el-rei D. Sebastião; e, em Africa a 18 d'abril do anno antecedente 1553, seu particular amigo D. Antonio de Noronha, filho do segundo conde de Linhares D. Francisco de Noronha, em um recontro com os Mouros de Tetuão; a cuja memoria compoz o soneto XII que começa :

Em flor vos arrancou, etc.

Ah senhor D. Antonio! a dura sorte, etc.

E a ecloga I, em que tambem toca na morte do antedito principe.

Continuando o marcial exercicio, passou, no anno de 1555, ao Estreito da Meca, em outra armada, da qual foi capitão-mor Manuel de Vasconcellos. Ahi demorou-se algum tempo, sofrendo incommodidades gravissimas, como consta da canção X, que escreveu em Goa, e principia :

A piedade humana me faltava,

A gente amiga ja contraria via,
No perigo primeiro; e no segundo,
Terra em que pôr os pés me fallecia,
Ar pera respirar se me negava;

E faltava-me emfim o tempo, e o mundo.
Que segredo tam árduo, e tam profundo,

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