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XIV

REALISTA E PAISAGISTA

ERNANDES Costa (1), que publicou uma longa crítica da obra de Júlio Denis, vinte anos depois da morte

dêste, atribui a larga divulgação dos seus livros ao sentimento predominante de todos os romances - a bondade que, no dizer do próprio Júlio Denis, «é um rico manancial que brota lágrimas ao toque da menor comoção». É do ilustre crítico a seguinte apreciação:

«É êste o segredo da voga extraordinária que os romances de Júlio Denis tão imediatamente

(1) Fernandes Costa, Revista Ilustrada, 1891, n.o 35. pág. 202, e n.o 36, pág. 208,

tiveram, e é por êsse invejável segrêdo que êles hão de ser lidos por tempo largo, e hão de encontrar, muitos e muitos anos depois de nós, um eco simpático em corações que ainda não

nasceram.

«Os tipos, as personagens, os actores da limitada comédia rústica que êste romancista, tão genuinamente português, põe em scena, e mormente as figuras essenciais do drama, são na sua generalidade bons. Afinam uns pelos outros. Como que se educam reciprocamente, compreendem-se, harmonizam-se, entendem-se, e se têm de disputar qualquer coisa uns aos outros, é mais ou menos bondade apenas.

«¿Será isso um quadro exacto do mundo, estudado numa pequena sociedade, num resumido meio? Não é».

Em primeiro lugar, devemos notar que não foi apenas Júlio Denis que explorou, na literatura, êste aspecto da vida. Outros o tentaram sem sucesso. É que há mais alguma coisa do que bondade na sua obra.

O entrecho dos seus romances é fantasia. Sob êsse aspecto não negaremos razão a Fernandes Costa; mas daí a considerar irreais as personagens dos seus romances, só porque as circunda uma auréola de bondade, vai uma distância infinita.

Júlio Denis detestava as más pessoas; não

lhe agradavam para o seu convívio nem para as suas criações românticas. Afastava-as, não sòmente por uma repulsa natural, mas também, na sua obra, por orientação literária. O bom e o belo eram as suas directrizes na arte; mas ambos subordinados à realidade das personagens. Somente as escolhia depois de as estudar, e desde que satisfizessem as suas aspirações de artista. Este realismo, que querem injustamente contestar-lhe, é a razão principal do seu triunfo, porque, como disse um distinto escritor, as suas personagens (refere-se às Pupilas) «vivem, e nunca mais esquecem a quem uma vez as conheceu».

A escolha de gente boa para a urdidura dos seus romances pode, num certo meio social, trazer-lhe admiradores; mas não são em menor número os que preferem a arte martirizada. dos que escalpelam as podridões sociais.

Na pintura há também quem prefira os assuntos trágicos, as monstruosidades orgânicas, às belezas sàdias e normais. Em igualdade de observação e de verdade, preferimos estas àquêles e, contudo, poucas maravilhas demoraram mais os nossos olhos do que os quadros inegualáveis de Velasquez, com os seus detestáveis bôbos, tão insuflados de vida, tão palpitantes de verdade que parecem dispostos a saltar das telas para fazer mofas ao próprio Filipe IV.

No polo oposto, numa outra expressão artística, divisamos o rosto inconfundível, cheio de beleza e mocidade, da Gioconda; e involuntàriamente sentimo-nos mais atraídos pela tela de Vinci do que pelas maravilhas do pintor espanhol.

Júlio Denis deixou para outros as descrições dos aleijões físicos e sociais e andou, pela sua família e pela vida aldea, a recrutar figuras ingénuas e doces, como as de alguns quadros de Goya, para as obrigar a representar apenas o indispensável na acção dos seus romances, de sorte a não se deturparem em exibições cruéis. Procurou, em geral, terminar as suas narrativas de uma maneira agradável. A desgraça incomodava-o, revoltava-o. Raras vezes a fez caír, mesmo em fantasia, sôbre as suas personagens. Ele próprio o confessa no final da Família inglesa :

«¿ Preciso de acrescentar que Cecília e Carlos vivem felizes?

«Nem eu teria coragem de lhes escrever a história dos amores se êsse não fôra o resultado».

Eça de Queirós, num outro campo de observação, tráz a realidade, em tôda a sua nudez, para as páginas dos seus livros.

Convulsiona as personagens, autopsia-as por

vezes. É arte, arte excelente, porque é a vida que, sob um outro aspecto, palpita nas páginas dos seus romances. Em Júlio Denis não há, porém, menos verdade na descrição das personagens; só o estilo é outro, a arte diferente. Fundamentalmente as cópias do natural são a base das duas obras. É por isso que elas hão de ficar por largos anos entre as mãos dos que amam a boa e sincera literatura romântica.

Nada mais injusto do que afirmar, como faz Fernandes Costa (1), que Júlio Denis não foi um escritor realista.

E pretende demonstrá-lo porque, em seu entender, Júlio Denis foge às descrições da paisagem! Concede que nos Fidalgos da Casa Mourisca predomina um pouco mais o género; mas vai acrescentando que estas descrições são, a-pesar-de tudo, tão pouco salientes que não se justifica o dizer-se que Júlio Denis foi um grande paisagista.

Nós enfileiramos ao lado dos que assim o classificam, embora não consideremos esta facêta do seu alto espírito de escritor a que mais caracteriza a sua personalidade artística.

É especialmente nas Pupilas e na Morgadinha que esta carência descritiva é mais severamente apreciada. Nas Pupilas, diz Fernandes

(1) Fernandes Costa, loc. cit., pág. 208.

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