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I

UMA CONVERSA

S Pupilas do sr. Reitor, de Júlio Denis, andam presas à vila de Ovar pelas personagens que, apenas o

romance apareceu, ali foram reconhecidas. De há muito ouvíamos dizer que o grande romancista ali as copiára do natural e citavam-se nomes e aduziam-se razões. O assunto que nos prendia por considerações de vária ordem, e principalmente por vivermos paredes meias da laboriosa vila, levou-nos a inquirições junto de alguns amigos que colheram da tradição e de investigações próprias subsídios valiosos para o estudo do romance e da obra literária de Júlio Denis.

O aparecimento do livro de Maximiano Lemos - Gomes Coelho e os Médicos e ainda o ter lido num jornal do Pôrto, a propósito do

falecimento de D. Maria Baptista de Almeida Zagalo dos Santos, em que reconheceram a filha do João da Esquina, uma das últimas representantes do interessante elenco do romance, levaram-nos a procurar elementos que pudessem documentar ou dar indicações fundamentadas sobre a vida real dos que nêle se movimentam. Perdido o momento, desaparecidos aqueles que ainda guardam reminiscências das individualidades apontadas, como sendo os tipos que o romancista aproveitou, não mais se podería tentar a sua identificação.

Iniciámos o estudo servindo-nos do auxílio valiosíssimo de vareiros ilustres que de há muito se interessam pelo assunto. O padre Manuel Lírio, o dr. Zagalo dos Santos, Pereira Rèsende e A. Dias Simões já alguma coisa tinham escrito a tal respeito; e o dr. José António de Almeida, distinto advogado, a quem nos prende uma velha amizade que vem dos tempos de Coimbra, conhecia factos inéditos que pôs à nossa disposição.

Começaram os trabalhos e, numa tarde de Outubro, conseguímos conversar, mercê da apresentação do dr. José de Almeida, com a filha da Margarida do romance, D. Emília Dias Simões, a única sobrevivente, que nos forneceu elementos preciosos para a identificação do Reitor, que andava erradamente ligada à pessoa de seu avô Tomé Simões.

Ao mesmo tempo, pudemos ouvir-lhe uma história de amores em que a própria pessoa de Júlio Denis entrava em acção e que nos radicou a convicção de que êle se retratára no romance na figura de Daniel, o médico leviano que arribara àquelas paragens para uma cura de repouso. A conversação, à luz discreta duma sombria tarde outoniça, tomou o ar íntimo das confidências familiares.

D. Emília Simões não se fèz rogada, iniciando assim os seus esclarecimentos:

Júlio Denis vinha aqui todos os dias. Meu avô era então o recebedor do concelho. Dizia minha mãe que, à tarde, era raro não comparecerem o dr. João Semana, o padre Cura, que vivia numa casa aqui ao lado, nosso parente o padrinho de minha mãe e de minha tia (1) e o dr. Arala. Contavam-me muita vez as caturrices que êles tinham. Especialmente o dr. João Semana e o padre Cura! Um nunca acabar!

E a descrição seguia com tôdas as minúcias. Nunca o dr. Silveira foi tratado pelo seu nome, nem Júlio Denis, que, ao tempo, era ainda o dr. Gomes Coelho, foi assim chamado à scena.

(1) Tratavam-no por padrinho, embora o não fôsse de baptismo de D. Ana Simões, a Margarida do romance. Informação do padre Manuel Lírio, que o averiguou nos livros paroquiais de Ovar.

Respirava-se a plenos haustos a atmosfera das Pupilas.

- Aqui era a sala de espera. Ali dentro era a recebedoria.

Levantámo-nos, inquirímos da disposição dos móveis e do arquivo da repartição.

A sr.a D. Emília continuou :

Aqui havia um balcão (era a menos de meio da pequena sala interior). Era onde se cobravam as décimas. Cá fora é que êles se juntavam. O dr. João Semana, dizia minha mãe, sentava-se neste lugar (e apontava um canapé de palhinha de que nos tínhamos apossado); o padre Cura ficava ao lado e, ali, o dr. Arala. Meu pai sentava-se em frente. Quando esteve em Ovar, Júlio Denis era certo vir a nossa casa tôdas as tardes, quando não vinha também de manhã. Gostava muito de conversar. Também passeava muito pelos arredores.

E, depois duma pausa:

O dr. João Semana e o padre Cura eram amigos velhos. Deviam ter aproximadamente a mesma idade (1). O dr. Arala também debicava com o padre Cura.

- E zangavam-se?

Raras vezes e nunca a sério. Contava

(1) O padre Cura era um pouco mais velho.

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