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pêndios. Ainda em 1880, à minha entrada para a corporação, se escancarava a lacuna; tomei-me do propósito de preenchê-la até onde as forças dum bisonho o permitissem, e por um esforço de autodidáctica trabalher uns poucos de anos em histologia e fisiologia experimental, introduzindo-as no ensino da casa, passado depois para as mãos de Plácido da Costa, um micrologista hábil desde os bancos da Politécnica.

A literatura felizmente e a tuberculose infelizmente, desviaram-no dessas amesquinhadas funções. Há estados mórbidos que permitem e até exaltam o trabalho mental, tal a enterocolia e ainda a bacilose. Á quelque chose malheur est bon, mesmo para o espírito. O Egas Moniz assenta o grifo de neurologista ao rastrear a individualidade psico-literária de Julio Diniz. Discípulo do famoso Freud, um dos grandes dominadores do pensar contemporâneo, aplica ao seu protagonista o sistema da psico-análise, que

tanto hoje anda em berra. Talvez por pequice da minha ignorância, estou um pouco de pé atrás sobre o freudismo. Não me quadram as suas generalizações temerárias a transcender os rigores da órbita scientifica, e muito menos a radicação sexualista das qualidades sentimentais e éticas. Erros que sejam, tem de reconhecer-se que na sciência e na prática há erros úteis de grande alcance, a abrir horizontes novos ao progresso da prescrutação ideativa; e não sofre dúvida que a psico-análise se tornou um instrumento crítico de alta valia. As biografias têm-se ressentido do seu influxo. Hei-de ler com mais detença o seu ensaio, e até doutrinar-me consigo sobre os mistérios do freudismo. Até morrer, aprender.

A medicina e os médicos têm invadido em onda crescente o âmbito da crítica histórica, artística e literária — volta-se aos tempos da renascença em que letras e sciências, humanismo e hipocratismo, se irmanavam como

filhos do mesmo Apolo. Franco Rodrigues dizia outro dia num conhecido jornal madrileno que personalidades ilustres do mundo scientífico espanhol enaltecem diariamente a arte médica com subtilezas literárias. E cita os recentes trabalhos amenos de Cortezo, Ramon y Cajal, Amalio Gimeno, Gregorio Marañon, e outros. Quantos exemplos poderiamos apontar de celebridades de faculdade, a cultivarem o jardim onde florescem letras e artes, na França, na Inglaterra e na Itália. A cultura humanista é hoje lá fora, no mundo médico, um predicado de realce.

Do Brasil o prof. Afranio Peixoto, higienista, letrado e presidente da Academia Brasileira, quando me manda os seus excelentes livros, inscreve sempre sobre a oferta a divisa do Ferreira - Não fazem dano as musas aos doutores. Sim, mas há que distinguir o lugar onde. Uma revista técnica em Espanha censura aos médicos espanhóis as suas sortidas para fora da clausura obri

gada dos hospitais e laboratórios. Em certo calcanhar do mundo que v. e eu bem conhecemos, disse-o já no exórdio do Rodrigues Lobo, ai daquele que põe pègada nas faldas de Helicon. Se atirou ao mesmo tempo a borla doutoral às ortigas e desertou da profissão, se vem a ser um evadido da medicina, bem está. Se porém se mantém no sacerdócio do templo de Cós, a boa gente dos oficiais do mesmo ofício abocanha-o; às duas por três vê-se desbalizado dos seus foros legitimos, por comprovados que estejam, de trabalhador da sciência médica. E se ainda por cima alinha períodos de prosa regular, então está perdido, passando a ser um simples ôdre de palavras. Acertada a frase do Beaudelaire a respeito do Poe: «Il avait le malheur de bien écrire ce qui a le don de éffaroucher les sots de tous les pays du monde».

Meu amigo, êstes fados não perseguirão o advento da sua afortunada obra, afortu

nada em tudo, na forma, no teor, no contexto. Teve sorte Júlio Diniz. Está aí uma pleiade gloriosa de escritores nossos do século passado a pedir mãos que lhes erijam um monumento assim. Até a escolha do tema foi feliz, porque Gomes Coelho tem, como os santos, um resplandor de ternura e doçura, que são afinal o mel da vida. Aos quinze anos ofertava o livro póstumo, acabado de sair, das poesias de Júlio Diniz, precedido dumas quadras infantis a lápis, àquela sob cujo signo celestial vivi. Com essa recordação saudosa fecho esta pobre epístola. Dirá v. desconsolado - afinal, deixou-me sem prólogo: É verdade. Guarde em troca estas páginas simples como tributo da consideração e estima que lhe voto, e que mais se vincularam agora, graças ao encantamento do seu livro de eleição.

Do seu ex-corde

Ricardo Jorge.

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