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criptores, os livros são como filhos: carne da nossa carne, sangue do nosso sangue.

Puz mãos, portanto, á obra que agora se apresenta a publico, e a que não quiz alterar, nem os lineamentos primitivos, nem o tom juvenilmente exuberante que lhe encontrava no estylo.

E succedendo que, pelo tempo em que terminava este trabalho, a Academia Real das Sciencias de Lisboa abria o seu concurso annual para o premio d'el-rei D. Luiz I, enviei o manuscripto ao certamen. Depois de ter deixado jazer a obra por dous annos nas carteiras da Academia, entendi não me convir demorar por mais tempo a publicação que hoje faço.

*

Não deixa de ser melancolicamente doce olhar agora, transcorridos vinte annos, para o renascimento de uma obra da mocidade. Quando a vida vae descendo, succede como de tarde, ao caír do sol: acodem á mente impressões de uma serenidade suave. São o prenuncio do acabamento placido. Só quando o remorso morde, ou o gôso estupido nos agita: só então a morte é dolorosa.

Voltando, porém, os olhos ao passado, examinando e julgando, a sós comnosco, o decurso da existencia e a successão dos actos, quando mais não seja, ha um ineffavel prazer esthetico ao reconhecer na vida uma unidade de acção, e nos actos, ainda os menos pensados, a obediencia a um impulso constante de idéas permanentes. De tal modo reconhecemos o que é verdade: que somos os agentes ou vehiculos de um pensamento latente nas obscuras cellulas da nossa creação. Germinam como se

mentes, crescem como arvores, desabrocham como flôres, amadurecem como fructos-vergam e cáem para o chão, desmanchando-se em pó, e confundindo-se com a terra, para regressarem ao seio do Inconsciente indefinivel.

Voltando, pois, os olhos ao passado, é com um certo desvanecimento que registo a circumstancia de a obra de hoje não differir da de ha vinte annos, nem no seu pensamento inicial, nem nas linhas fundamentaes da sua estructura. Era um esboço lavrado com traço por vezes incerto: agora, procurei esbater os contornos, accentuar as tintas, rectificar o desenho. Os leitores dirão se o consegui.

N'este acabar de seculo, repito, por tantos lados similhante ao fim funebre do seculo XVI, quando morreram Camões e Portugal, o vivo desejo da minha alma é que, se effectivamente está morta a esperança inteira e temos de abandonar a idéa de voltarmos a ser alguem digno de nome vivo sobre a terra, este livro seja como um ramo de goivos deposto no altar do poeta que, morrendo com a patria, lhe cantou o glorioso passado, legando-nos o testamento de um futuro não cumprido.

Maio, 1891.

O. M.

CAPITULO PRIMEIRO

As epopeias

I

Chama-se intuição a faculdade pela qual se nos representam imaginativamente situações ou estados typicos da natureza; e chama-se artista aquelle homem que, dotado sobretudo de intuição, possue o necessario para traduzir symbolicamente, pela musica ou pela palavra, com o pincel ou com o buril, as imagens da sua mente, de modo que provoquem na mente de quem vê, ou ouve, sensações egualmente syntheticas ou typicas.

A arte portanto, não copía, inventa; não reproduz, cria. Não procede segundo a razão, analysando e abstrahindo: vae aos saltos, guiada por illuminações subitas, obedecendo ao genio que a inspira, e lhe patenteia francos os horisontes da verdade, a qual não é o aspecto material e exterior das cousas, mas sim a substancia d'essas mesmas aquillo a que se chama o Ideal. Não ha, pois, arte fóra da realidade; mas não basta repro

cousas

duzir os aspectos reaes, para se crear uma obra d'arte.

A arte, é o symbolismo da natureza.

Por isso mesmo a arte é, das faculdades humanas, a mais viva, a mais forte, a mais gloriosa: aquella que mais perto nos colloca, e em maior intimidade, com as penumbras vagas do mysterio em que nos agitamos crepusculo indefinido que se prolata sem se extinguir, alargando-se, pelo contrario, á medida que o robustecimento da nossa razão e a quantidade dos nossos conhecimentos cresce, ampliando a peripheria do espaço claro e nitido para o nosso espirito pensante.

Para além d'essa peripheria que limita o imperio seguro da razão dos homens, forte pela experiencia e pela sciencia, senhora de si propria, livre, ou sabendo a quê e como obedece, o que significa o mesmo: reina para além d'ella o instincto. E para o instincto toda a vontade é sentimental, todo o pensamento imaginativo, e a vida inteira do homem uma symphonia ou um canto indefinido, vago, crepuscular.

A vontade e o pensamento, essas duas fibras parallelamente contorcidas, são a verdadeira argilla vermelha de que se fez o homem; e instigadas pelo instincto, ou pelo Inconsciente, agitando-se na penumbra do entendimento, produzem os heroes e os artistas, que, em actos e em symbolos, nos revelam o proprio segredo da existencia, arrastando comsigo, em delirios de enthusiasmo, povos ainda susceptiveis da virtude de crêr, e da virtude maior ainda de amar.

Incontestavelmente, pelo que vêmos até hoje, o homem valia mais como animal capaz de heroismo e arte, do que como olympico vehiculo da razão,

recheiado de sabedoria; embora incontestavelmente tambem a philosophia e a sciencia sejam o destino luminoso, porventura fatal e martyrisante, da nossa apparição na sequencia epica dos tempos.

O mundo entristece, envelhecendo. O seu ultimo dia de gloria, de contentamento, de enthusiasmo, de fervor em crêr, de ancia em amar, de furia em viver, foi esse clarão esplendido da Renascença que faz uma auréola a Camões: o que mais firmemente creu no seu Deus, na sua Patria e em si proprio; o que mais arrebatadamente amou com os sentidos, com a imaginação, em corpo e em alma, a belleza e a virtude, as mulheres, os deuses, o Homem e a Terra: desde o chão que o viu nascer, pelo mundo quasi inteiro que percorreu, até ás espheras concentricas de Ptolomeu, em que á imaginação lhe apparecia o Universo abraçado pela sua inmensa alina de poeta, n'um fervor de enthusiasmo optimista.

Renascia com effeito a alegria ingenua dos antigos tempos classicos: a alegria de viver á lei da natureza, sem raciocinar nem pensar a vida, sentindo-a apenas. Resurgia o optimismo palpitante nas edades hellenicas, epicamente forte em Eschylo, docemente humano em Sophocles; e a virilidade romana que termina em Lucrecio a philosophar um naturalismo até alli instinctivo, e que se apagou quando, na limpidez do azul, Virgilio pôz a mancha ainda tenue, ainda leve, das suas lachrymae rerum.

A tristeza das cousas avultou, cresceu, tornou-se em nevoeiro espesso, incendiado pelos clarões da fé mystica, rasgado pelos raios da condemnação e da penitencia, nos tempos obscuros da Edade média, quando a vida se transforma n'uma phantasmagoria.

Serenaram os ares: renascia com effeito a clari

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