Imagens das páginas
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outra amante que viera depois, da côr fulva do ouro, com um brilho secco de metaes, e os braços duros, os seios fartos, o peito forte da acção e do combate a India da sua ambição partira-se em hastilhas rijas, como os metaes se partem, despedaçando-se n'uma ruina fria de chatinagem, de cobardia, de cobiça, «d'uma austera, apagada e vil tristeza! Sião, a patria que sonhára emquanto andava pelas ruas de Babylonia: essa imagem carinhosamente bella, outra amante que nascia dos beijos de Natercia sobre a refulgente ruina de seu heroismo, vira-a tambem ao pôr pé no caes da Ribeira, feita uma necropole varrida pela peste, com os maraus jogando a bola na rua Nova, verde de herva. Morrêra tambem essa terceira amante!

E agora, o seu derradeiro amor partia-se des pedaçado n'um fuzilar de relampagos, entre os nevoeiros densos da areia ardente de Alcacerquibir. Rasgava desesperadamente as folhas soltas do seu poema, e, abraçado á ultima chimera, o céo, entoava o seu canto de cysne, invocando a unica verdade,

a morte:

Oh! quanto melhor he o supremo dia
Da mansa morte que o do nascimento!
Oh! quanto melhor he um só momento
Que livra de annos tantos de agonia!

De alcançar outro bem cesse a porfia,
Cesse todo aplicado pensamento
De tudo quanto dá contentamento

Pois só contenta ao corpo a terra fria... 1

Dous annos de agonia, dous annos de silencio e dôr, dous annos como os passou Portugal, debaten

1 Sonn. 234.

do-se miseravelmente nas vascas do fallecimento: dous annos mais, e ao mesmo tempo, em 1580, Portugal e Camões caíam na terra fria de uma sepultura. Expirando, tinha o poeta sequer a amarga consolação de acabar com a patria. «Morro com ella», disse, e finou-se.

Não admira, pois, que desde então Camões ficasse na alma popular como o symbolo da nação, e os Lusiadas como a sua biblia. Não admira que tivesse passado á condição de eponymo d'esta pequena patria, tão similhante a Athenas, e mais ainda a Sparta, na agitação da sua vida politica, na grandeza da sua missão colonial, e tambem na miseria funebre da sua decomposição.

Não admira que, desde o seculo XVII, por toda a parte onde surgisse, d'entre as ruinas do edificio. nacional, algum fuste de columna ainda de pé, ou algum friso inteiro onde se visse correr agitada a tragedia de outras éras; por toda a parte onde se erguesse do matagal de urzes e cardos da historia a haste florida de uma açucena de saudade ou de esperança, a corolla d'essa flôr, ou a fórma d'essa evocação, tivesse o perfume e a côr dos Lusiadas e se considerasse uma revelação de Camões, o Paracleto portuguez. Cantando os Lusiadas, os ultimos leões da India defenderam Columbo perdidamente; e no nosso seculo o invasor, querendo regalar-nos como Cesar, promettia nos um Camões para cada provincia.

Camões e D. Sebastião, os Lusiadas e Alcacerquibir, eis-ahi os dous homens e os dous actos que ficaram para serem gravados na imaginação colle

ctiva, como uma fé e uma esperança, como um mandamento e um captiveiro. Este Israel do extremo occidente, em que a plasticidade da imaginação grega se fundira com a tenacidade obscura do phenicio e com o prophetismo genial do judeu, possuia afinal a sua biblia, e tambem chorava as ruinas do Templo, ajoelhado aos pés do vencedor que transformára Sião n'uma Babylonia castelhana. O sebastianismo que foi a religião lusitana, fórma epilogal do nosso patriotismo, veio até aos dias de hoje propondo Camões como o precursor de tudo quanto ha mais avesso ao pensamento proprio do poeta.

Fazer-se um propheta da democracia o homem em cujo cerebro ferviam os pensamentos classicos da monarchia universal, não é mais contradictorio do que arvorar-se em apostolo do livre-pensamento aquelle que levou a vida no ardor do combate religioso contra o mouro, e a acabou desvairado pela chimera da conquista do Santo-Sepulchro, ardendo em indignação contra os lutheranos, acceso sempre em uma fé inexgotavel.

E todavia, este contrasenso é só apparente e exterior. No fundo, o erro é um acerto; e a critica, se o não dissesse, provaria um limite de vistas inca-paz de descortinar as miragens vagas da imaginação dos povos. A consagração historica de Camões vem ainda moldar- -se no processo remoto pelo qual os deuses foram abstrahidos da consciencia nebulosa das gentes primitivas. A magia das palavras e dous ou tres momentos syntheticos da vida, tanto basta para que a imaginação plastica levante um mytho e dê uma supposta realidade á visão dos proprios desejos que passou, aérea, nos horisontes do espirito. Essa nuvem toma corpo, a apotheose

substitue-se á biographia; e a imagem verdadeira do homem que foi some-se, deixando em seu logar a figura que o povo abstrahiu da illuminação dos proprios corações.

Não admira, pois, que nós proprios, ao pretender pôr de pé a figura de Camões, obedecessemos á vibração transmittida, e que, amalgamando a lenda com a historia, déssemos porventura significado e proporções demasiadas a factos e estados d'alma comesinhos. Talvez a nossa vista amplificasse as proporções da imagem, impressionada pelo prestigio que essa imagem exerce nas imaginações. Talvez; mas se assim fôr, não nos arrependemos d'essa culpa. Por patriotismo, em primeiro logar; e por amor á critica, em segundo.

Por amor á critica, sim, porque a verdade, quando se trata dos phenomenos indefinidos da alma esthetica, está muitas vezes mais nas adivinhações, quando são idealmente verosimeis, do que n'uma impossivel determinação exacta. No poeta, o homem voluntario, o homem conscientemente deliberado, vale sempre tanto menos, quanto maior é o poder da sua intuição. Os desejos propheticos brotam-lhe espontaneamente no espirito, e muitas vezes o pensamento não lhe diz o alcance dos dardos da sua phantasia. A elle proprio succede o que succede a quem contempla um produeto de arte: receber de uma mesma nota uma impressão de alegria ou dôr, conforme a disposição actual dos seus nervos. A elle proprio acontece muitas vezes que, se se interrogasse a saber se de facto ri ou chora, a sua intelligencia ficaria impotente para responder, e apenas pela imaginação ainda presentiria que as lagrimas e os risos se confundem n'um mesmo vaso feito de pathos e de ironia.

Os poetas valem por aquella porção do vaticinio inconsciente de que são portadores.

Por isso a verdadeira vida do poeta, a vida que importa para se lhe conhecer a verdadeira physionomia, não é a successão dos actos exteriores: é a serie dos estados mais ou menos indefinidos do pensamento. Com o heroe dá-se exactamente o contrario; porque a acção tem para elle o papel dirigente e inicial, que tem para o poeta a contemplação.

Tudo isto, portanto, explica o fundamento do nosso retrato de Camões, pallida imagem d'esse retrato magnifico pintado pelos corações portuguezes no decurso de tres seculos. Esse retrato, dizemos nós, em conclusão, é o verdadeiro.

O homem, conforme existiu, está para elle como o vaso está para a essencia, ou para a chrysalida o casulo. Como no mytho da alma abandonando no momento da morte o seu envolucro corporeo, tambem o verdadeiro Camões espiritual se separava transfigurando-se. E a tristeza foi que, de facto, essa alma voou para o céo das chimeras sebastianistas, deixando-nos para as folhearmos, com os olhos ennevoados de lagrimas, as folhas soltas dos Lusiadas...

Essa alma era a lusitana, feita de esforço e grandeza, de magnanimidade e agudeza moral, de orgulho e inteireza, de constancia para as luctas, de caridade para os infortunios, de serenidade de animo e de uma fé luminosissima no seu destino, que adivinhava magnifico e que a sorte veio tornar cruel.

N'essa alma confundiam-se a candura de um Nunalvares com a força de um Albuquerque, com o stoicismo christão de um Castro, mais o seu

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