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amor celtico da natureza, mais a flor de ingenuidade popular desfolhada pelo bom senso de GilVicente, e a ternura amaviosa de Bernardim Ribeiro.

Todas as cordas da lyra portugueza se encontravam no plectro camoneano, attestado symbolico da individualidade lusitana, maravilhosamente escripto n'uma epopeia, para ficar ao lado e acima dos traslados que iam escrevendo em dramas os nossos irmãos da Peninsula com a sua vis naturalista de castelhanos.

E quiz a sorte que um poeta, assim dotado com todos os caracteres do povo que representava, apparecesse no momento proprio da completa definição do seu pensamento: quando na tarde do dia glorioso, o sol, descaíndo para o poente, já não podia estontear as ambições; quando a experiencia apontava já nos horisontes as nuvens a amontoarem-se e o crepusculo a subir do lado do nascente, deixando á alma a plena posse de si mesma e ao juizo a liberdade de julgar.

E quiz, finalmente, que a vida d'esse homem fosse cyclica amante como Portugal, que ficou celebre pela tragedia de Ignez de Castro, vivêra de amor na adolescencia; vae a Africa preparar-se para as campanhas do Oriente, como Portugal tambem foi; embarca para a India, como a nação inteira embarcára; volta de lá derreado, côxo, em moletas, como voltou egualmente Portugal, para agonisar um instante, expirando a um mesmo tempo...

Não era necessario tanto para ferir a imaginação de um povo. Que admira, pois, a apotheose de Camões?

CAPITULO TERCEIRO

A época das conquistas

I

Heroismo é a palavra que define syntheticamente este periodo da vida nacional portugueza. Pelo heroismo se explica a nossa grandeza e nosso abatimento, as nossas virtudes e os nossos vicios, a culminação gloriosa a que subimos e o abysmo pôdre em que nos afundámos para morrer.

O heroismo é o condão e a sina dos povos collectivamente idealistas; é por via de regra o temperamento espontaneo das nações desabrochadas ao sol do meio-dia, que dá á vida individual uma feição communicativa e reciproca, ao contrario dos climas asperos em que o homem, isolado por uma natureza agreste, redobra o pensamento em vez de o expandir, e ensimesmando-se, isto é, applicando á propria alma o seu poder de amar e estudar, produz essas maravilhas de analyse psychologica realisadas por Shakespeare com a intuição

e a arte, e por Kant com a observação e a critica.

O homem meridional é outro: mais espontaneo, menos reflexivo, mais pagão, menos espiritualista. Não é que o genio contemplativo seja peculiar aos povos septentrionaes, nem que lhes seja desconhecida a acção. Mas a actividade da gente do norte é diversa: reduz-se á esphera da vida collectiva de relação, não se alarga para além da fatalidade obscura da lucta contra uma natureza hostil. A sua poesia está na contemplação. A gente que, no mundo, mais fez pelo commercio foi a ingleza, cuja gloria é a poesia pessoal e lyrica ; e nós, que démos prova cabal da nossa incapacidade mercantil, pois do proprio Oriente o rendimento liquido ia parar ás mãos de flamengos e inglezes que nos levavam todo o ouro: fomos nós que nos Lusiadas escrevemos o poema do commercio.

A gente do norte agita-se impellida na lucta pela vida: por isso mesmo põem o ideal nos encantos da paz, da casa (home), dos sentimentos individualistas, e na contemplação nebulosa de uma natureza inimiga que necessita ser espiritualisada para que possa amar-se. Essa gente é subjectiva. A meridional vive de fóra para dentro, em communhão permanente com o proximo, confundindo-se com elle, indistinctamente, palpitando com a rajada do vento, com a ondulação da luz, com a vaga do mar, com a côr da terra, com as paixões dos homens. O movimento, a acção, não lhe apparecem com deveres ou necessidades crueis, contra as quaes buscam na vida interior um refugio: teem-n'os, ao contrario, como a propria expressão e destino da existencia.

E' a este modo de ser, nos seus momentos fecun

dos, que se chama heroismo; e nenhum livro, de todos aquelles em que o espirito humano tem conseguido crystallisar alguma das suas concepções typicas, representa melhor o heroismo do que os Lusiadas.

Este temperamento moral tem, como tudo, os seus limites de capacidade comprehensiva, de efficacia pratica e de belleza esthetica. Por isso mesmo que procede mais do instincto do que da reflexão, o seu encanto é maior, maior tambem, por vezes, o seu alcance efficaz, e mais intensos os raios de penetração comprehensiva. Mas procede sempre como as cousas do instincto, que são irreflectidas, desordenadamente e em turbilhões. Por isso tambem a expiação do heroismo é o reverso de uma medalha gloriosa, manchada de nodoas, coberta de um pó que, soltando-se, conspurca, e, crescendo, suffoca dentro de uma cova a força e o esplendor dos dias transactos.

E' então que, passado o momento de enthusiasmo febril, a intuição abrange os horisontes da realidade; e é por isso que as grandes éras poeticas nunca são as da plena expansão energica das sociedades. Os Lusíadas apparecem quando a patria agonisante estava já debruçada sobre a cova de Alcacerquibir. Virgilio vem tambem na edade classica de Augusto, quando Roma, terminada a época da sua expansão e grandeza, buscava nas instituições imperiaes e na «immensa magestade da paz» o triclinio dourado e cómmodo para ir passando os seculos da sua digestão apopletica. A incomparavel epopeia virgiliana exprime, na sua perfeição, no seu rigor, no seu saber artistico, esse meigo descair de um sol que não dardeja mais os raios fulgurantes do meridiano, com

uns longes de cançaço annunciando a doença, com a madureza do espirito annunciando a velhice, com a melancolia crepuscular trazendo nas azas o negrume da noute.

Em Camões, a noute fecha-se com a morte do seu povo e com o desespero funebre da sua alma na força perdida da patria, na belleza apagada do mundo.

E como a condição necessaria do nosso heroismo era a ruina d'este povo, foi bom que Camões surgisse no momento em que veio ao mundo, pois é incontestavel e sabido que a intuição poetica adquire com a desgraça uma tempera e um gume desconhecidos nas épocas de fortuna. Os prophetas judeus cantaram os hymnos mais sublimes da piedade semita na propria hora em que a sua nação despedaçada caía em ruinas. Foi quando a Allemanha dos nossos dias, desconjuntada como nação, opprimida como povo, parece que devia jazer muda e esteril: foi então que surgiram os seus grandes poetas e philosophos e os inventores perspicazes, philosophos e poetas a um tempo, de todas essas sciencias novissimas que desvendaram os segredos da alma dos povos; foi então que tambem os artistas deram á musica um poder de expressão desconhecido, e assim, por dous modos, appareceu a maravilha mais extraordinaria, e acaso o limite mais intimo que póde attingir o pensamento humano. Foi emquanto se desenrolava a epopeia portugueza pelo Oriente, durante a Renascença, que, no meio da dilaceração dos seus estados, da oppressão ominosa do aragonez, das revoluções medonhas, das orgias sangrentas; quando parecia que a Italia se extinguiria, como seculos antes se extinguira a Grecia: foi então que o mundo viu com pasmo as

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