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maravilhosas creações dos artistas e as obras singulares dos poetas italianos.

Por outro lado, não são os povos, cuja acção é levantada pelo heroismo, os que provam eminentes no duro e paciente officio da construcção das nações, obra sobretudo do instincto pratico; da mesma fórma que não são os poetas os eleitos para o mister de estadistas. A sociedade humana tem no trato grosseiro e duro o quer que é de inferior, que choca e repelle a candidez do poeta, ao qual, por seu turno, a phantasia não deixa perceber a grandeza que, revestida pelas fórmas grosseiras e quasi vis da realidade, se encontra no fundo das cousas sociaes. Os temperamentos dos povos reproduzem, amplificados, os individuos: assim o grego, mestre da philosophia e das artes, mostrou ser como esses italianos hellenisados da Grande-Grecia, incapaz de passar além da vida democratica da cidade, de construir a nação e de conceber a idéa mais geral de patria e de sociedade. O mesmo diremos dos celtas que, na Irlanda, gemem sob o mando ferreo do saxonio, e que na França se debatem hoje com a instabilidade das fórmas governativas, depois de terem construido geographicamente a nação sob o governo feudal e monarchico dos frankos. Outro tanto diremos d'essa raça germanica, assente no centro do Imperio, bavaros, allemães, tão grandes pela intelligencia; tão fracos, porém, que sómente á voz dura do prusso, slavo e não allemão, souberam extrahir dos sonhos vagos da poesia patriotica a realidade da patria positiva e politica. O macedonio foi para o grego, como o prusso para o allemão, como o piemontez na Italia moderna, e como o romano que, na antiga, estendeu o seu imperio por todo o mundo então conhecido de europeus.

Nós, que na época das conquistas nos cançavamos tanto a imitar classicamente os romanos, chegando á parodia que se viu no triumpho classico de D. João de Castro em Goa; nós, porém, não tinhamos no nosso sangue a semente que aos romanos déra essa disciplina na força, origem do seu imperio. Celtas, não nascêramos para mandar: vieramos para descobrir, incitados pela curiosidade do genio; ao mesmo tempo que, porventura, remotas origens da nossa estirpe, porventura o trato contínuo com africanos, hamitas e semitas, mouros, judeus e arabes, davam ao nosso dominio um caracter feroz e funebre, intercalado de terror e orgia, illuminado simultaneamente pelo fanatismo e pela cobiça, que aos homens typicos, a Albuquerque por exemplo, imprimem por vezes a physionomia de um Assurbanipal, e á côrte em Lisboa o aspecto de nova Carthago, onde reina uma dynastia de mercadores fanaticos.

O nosso heroismo, pois, embora levantado sempre acima do drama desordenado dos castelhanos, por essa vis epica de Camões e por essa nobreza que os Lusiadas respiram de mistura com o terror, caracterisa-se fundamentalmente d'este modo, apesar de constante preoccupação classica dos eruditos e dos litteratos.

E', portanto, a reacção dos elementos basilares da nossa alma nacional que tambem caracterisa a dissolução d'ella. A cobiça mercantil converte o imperio n'uma chatinagem; a ferocidade produz a ancia com que os indigenas se voltam contra nós por toda a parte, e nos repellem assim que fraquejamos, reduzindo as nossas conquistas, que se estendiam até aos confins da China, a uma lembrança fugitiva apenas, cyclone tremendo que um dia passou so

bre os littoraes do Oriente, levando nas azas essa curiosidade insaciavel que tambem nos fazia querer abarcar o mundo inteiro.

«Se mais mundo houvera, lá chegára, diz Camões; e D. Manoel tinha tomado já para si como emblema a esphera armillar symbolica. Esse symbolo exprime o idealismo da nossa ambição, que se não satisfaria senão com o absoluto.

Ora, quanto maior e mais desordenado o ideal é, mais extraordinario apparece o heroismo: n'isto se encontra a razão da immensidade e grandeza dos heroes creados pelas religiões. E' um sentimento da mesma especie que arrasta os portuguezes, em cujos cerebros tambem se agita a idéa de cumprirem uma ordem de Deus, praticando o que fazem. O instincto patriotico vem logo depois do religioso na escala dos motivos capazes de arrebatarem os homens até ao heroismo.

E esse heroismo, que leva os santos ao martyrio, é o mesmo que leva tambem ao supplicio as nações tocadas um dia pela vara fatidica do destino. Assettearam-nos, degolaram-nos; o nosso sangue correu, deixando-nos o corpo exanime, porque tinhamos commettido a loucura gloriosa de mostrar a terra ao mundo, desvendando os segredos dos mares, esquadrinhando os recessos das costas e angras, insinuando-nos por todas as enseadas, aportando em todas as ilhas dispersas na vasta campina dos oceanos tentadores. Todo aquelle que no mundo, homem ou nação, praticou uma obra heroica, teve como premio glorioso um martyrio. Esta crueldade das cousas é a suprema justiça para quem lhes comprehende a natureza.

Pagamos o nosso heroismo, como a França esmagada em Pavia, a Italia reduzida ás condições

de um tumulo, a Hespanha já destruida, quando vinha arrogante receber em Lisboa as chaves do palacio abatido, cuja cupula tombára em Alcacerquibir. Que immensos crimes, que actos nefandos commetteram esses povos assim martyrisados? Sonharam, cantaram, bateram as azas para o céo, a mostrar o caminho ao mundo. A França, destinada pela geographia e pela historia ao papel de equador ethnico, insistia no seu proposito de fundir pelo espirito e pela ordem as duas faces do mundo europeu, a germanica e a latina. A Italia, balouçada entre duas vagas somnambulas, mas tragicas, o Papado e o Imperio, aspirando á unificação do mundo e á restauração de Roma, consumia se nas lembranças do passado, desvairada no presente pela expansão anarchica da força, pela invenção delirante da arte: via-se outra vez o homem antigo surgindo das ruinas das revoluções modernas. A Hespanha, finalmente, prostrada aos pés da Cruz, allucinada por um delirio mystico, votára-se á reconquista do mundo para Deus, adorando-o com os impetos da alma mosaica, e depondo-lhe aos pés, como os carthaginezes aos pés de Moloch, os thesouros arrancados com ferro e fogo pelas Americas e pelas Indias.

E que faziam, entretanto, as grandes nações de hoje, as felizes, as ricas? Iam fundindo e limando a immensa dentadura de aço com que haviam de devorar o Meio-dia, para se fartarem. Loucas! pois lhes succede como á serpente que, depois de saciarse, adormece como que morta. Produzem, compram, vendem, e ingerem muito: os queijos, a carne succulenta e gorda e o alcool, que serve para alcançar, n'uma embriaguez bestial, esse esquecimento da vida, estado negativo indispensavel, que nós, os

doudos, attingiamos, porém, n'uma embriaguez divina, perdendo-nos nas nevoas da allucinação mystica, ou nos ardores d'um heroismo fecundo.

Ainda no proprio ponto de vista utilitario, posteriormente dominante: ainda n'esse, valemos mais.

II

Tres factos culminantes caracterisam em Portugal essa ancia de viver que, por toda a Europa, é dominante na Renascença, depois da severa e longa quaresma medieval. Toda a energia d'este povo crystallisa em tres actos: o imperialismo politico, as descobertas e conquistas, o absolutismo religioso. Terminára o longo debate dos poderes rivaes durante a Edade média: a Egreja, herdeira da civilisação classica e mandataria de um Deus feito de caprichos; a nobreza feudal, nascida no tumulto das guerras; e a monarchia que, saindo por selecção da assembléa dos guerreiros, logo chamára a si o auxilio da tradição imperialista da Antiguidade. D. João II, que foi em Portugal o principe-perfeito de Machiavel, o homem, como lhe chamavam em Hespanha, esmagára com o punhal e o cadafalso a velha nobreza goda, para D. Manoel depois, chamando reforma dos foraes á destruição das liberdades concelhias, extinguir o localismo que democraticamente reproduzia nos municipios um espirito de autonomia correspondente ao dos senhorios. A unidade da nação, acabada, encontrava o seu symbolo no monarcha; e o genio da Renascença denunciava-se tambem fazendo, como diz Burckhardt, do estado uma obra d'arte.

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