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assistir em Goa, essa Roma novissima em que resuscitam os dias de Cesar.

Entremos a barra. A vaga desfaz-se brandamente em espuma, rolando para o interior das gargantas formadas pelas garras de terra deitadas sobre o mar, como patas estendidas de um leão dormindo. Do norte, a praia de Condolim vem morrer na ponta da Aguada, em cuja base as palhotas dos indigenas se reflectem na agua, e cujo topo não está coroado ainda pelo forte, só construido em 1604. Do sul, as terras de Salcete, ainda gentias, véem acabar no morro de Mormugão. Entre os dous promontorios, a ilha de Goa, ladeada pelas barras da Aguada e de Quary, estende-se para o mar, terminando na ponta do Cabo, onde um baluarte attesta á face do mar o imperio portuguez. Em frente d'elle expirou Albuquerque, o conquistador, quando voltava de rematar a sua empreza em Ormuz. Não podendo já escrever, ditava a sua ultima carta para el-rei: «Quando esta faço a V. A. tenho muito grande saluço, que é signal de morrer...>>

O mar brinca nos cachopos e recifes, as gaivotas em bandos esvoaçam pescando; na praia os gentios nús, negros e luzidíos, com o cabello atado no alto do topete, compõem as rêdes cantando algum mandó languidamente saudoso dos tempos em que ainda não esmagavam os mares esses galeões medonhos, sempre promptos a vomitar fogo: esses galeões que, de verga d'alto, empavezados, com os soldados de guarda nos chapitéos, esperam as ordens para seguir rio acima a encorporar-se no cortejo triumphal do vice-rei.

Na margem direita, os palmares da praia de Ca

1 Cartas, 6 dez. 1515; p. 381.

razalem que conduz ao Cabo, espelham-se nas aguas mansas da bahia, terminando na ponta onde Gaspar Dias levantará o seu forte (1589), ahi onde o rio se aperta contra o morro fronteiro dos Reis Magos, coroado pelo castello das terras de Bardez, conquistado por Albuquerque no proprio dia em que tomou Pangim.

O rio comprime-se, a terra avança, e cresce o diluvio da vegetação luxuriante que abafa o ar. As mangueiras, as jaqueiras, os coqueiros, enraizados na areia salgada e balouçando sobre a agua a sua folhagem finamente laciniada, interrompem com uma cortina movediça de altos fustes desequilibrados, o desenrolar das perspectivas distantes, onde, pelas encostas côr de ouro, raparigas núas vão pastando os rebanhos de vaccas alaranjadas de geba sobre a cernelha. Na ria fundeiam os patamarins de dous mastros, cahiques de cabotagem, e junto á praia correm sobre a face serena das aguas, as champanas, as tonas e almadias dos gentios que vão remando, carregadas de arroz, de fructas e legumes para o interior da terra, direito a Goa, onde se prepara a grande festa do triumpho. Já as fustas de guerra, com as suas prôas aguçadas como dentes de espadarte, com os latinos ferrados e os remeiros gentios, se preparam para largar, porque se ouvem, com o marulhar da vaga na barra, longinquos repiques de sinos, eccos de salvas distantes, e um ruido que parece de atabales e charamellas, de trombetas e de pifanos. Largaria já, de Pangim para Goa, o vice-rei?

Rememos, leitor amigo, vamos remando pela ria acima, deixando Pangim á direita com o seu pagode indio caído e deserto, mais acima Ribandar, o antigo paço dos rajahs vencidos pelos mouros. E'

ahi que as terras de todo se abaixam, que as aguas se abrem n'um leque de braços, sarjando a planicie inteira. Defronte, na margem esquerda, partem para as terras de Bardez a ria de Mapuçá e a de Naroá, deixando de permeio a ilha do Chorão; e entre o ramo de Naroá, e este que nos leva a Goa, fica a ilha da Piedade..

O ar é outro, diversa a côr da agua. O fundo que para jusante se formava com areia e pedra, é lôdo agora, e as margens vergam sob o peso da vegetação massiça. A agua já não parece fluida, por não ser transparente: o verde tornou-a espessa. As palmeiras esguias, os bambús ensombrados, os salgueiraes, fundem-se nas aguas; e as aguas infiltram-se por toda a parte nos meandros das salinas e dos arrozaes. A ramaria das arvores mistura-se ás velas de ola secca das champanas que vão correndo por entre os campos, acompanhadas pelo vôo do gaivão balouçando se nas azas pardas sobre a paisagem palpitante, onde o sol que já vae alto começa a formar um nimbo de vapores da terra humida, esvaído, oscillante, como idéas vagas genesiacas.

Na confusão palpitante da terra, da agua e do sol, a pulsação vital é offegante. Nos paúes, os cannaviaes, como jangadas de verdura, balouçamse ao vento, murmurando; as flores rutilam na verdura espessa; e o perfume penetrante da champaca, rosa de amor com que as filhas da India entrançam os cabellos, inebria a alma indigena, perdida nos meandros vegetaes do pimpol, abrindo os seus doceis, largando para o chão as suas cordagens que se enraizam como enxarcias da nau mystica em cujo ventre se gerou Vishnu. O pimpol é um templo e o proprio deus: debaixo da sua

abobada, em volta do seu tronco, sobre os altares terraplenados em circulo, estão as offerendas e os ex-votos, cocos e luzes animadas que os gentios vão depôr religiosamente. E o vento que passa pelas abobadas vivas da figueira de Vishnu, roçando as suas folhas coriaceamente finas, de um verde brilhante e metallico, agita-as, e ellas batem com um ruido secco, de papyros sagrados, vozes enygmaticas indecifravelmente expressas, emanações nebulosas da vida vegetal, capitosa e absorvente, que estonteia, desvirtua e entorpece a consciencia incipiente do homem.

Outro é o som claramente metallico e definido dos sinos que repicam em Goa, chamando para a vida, acordando para a acção heroica, os portuguezes, que as tentações do clima vencem a ponto de «com molheres de cá e trabalho em terra quente, como pasa hum ano, nom serem mais homeens», segundo Albuquerque dizia.

Repicam os sinos gloriosamente, fallam os canhões com imperio, soltam-se os vivas enthusiasticos. A natureza fez-se homem, e esses homens são heroes. E' Goa triumphante! D. João de Castro, vencedor de Cambaya, passa coroado com a gloria e a força do nome portuguez na India. O sol está no zenith, o seu resplendor deslumbra. Goa levanta-se, alva, nitida e luminosa, do seu berço de verdura, como uma idéa pura do cáos da inconsciencia nebulosa. E' uma fortaleza europeia, no meio do dedalo oriental. São muralhas e torres, bastiões e couraças que defendem a arce portugueza das arremettidas impotentes do Hidalcão, cujas terras,

pasmadas, se estiram em volta n'um adormecimento. São egrejas e palacios que coroam a cidade, erguendo-se ao lado dos bastiões, como fortalezas irmans, da fé e do imperio. São ruas, são praças, por onde a turba vestindo galas passa orgulhosa, revendo-se na sua gloria, conscia da sua força.

E' Goa, a metropole do imperio oriental portuguez, onde todas as gentes se encontram confundidas e todas as crenças approximadas; Goa, a capital de que só as frutas da terra rendem a elrei, afora o porto, vinte mil cruzados» ; Goa, o emporio do commercio com todo o Malabar e com Chaul e Dabul, em Cambaya; Goa, onde as naus de Ormuz que trazem cavallos para o Dekkan inteiro e para o reino de Narsinga, deixando cada cavallo a el-rei quarenta cruzados, levam de retorno o assucar e o ferro, o arroz e a pimenta, o gengibre e as especiarias; Goa, que hoje, trinta e sete annos decorridos desde o dia em que Albuquerque o terribil a captivou, triumpha imperialmente sob o sceptro de Castro o forte.

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Já o vice-rei largára de Pangim, subindo o rio direito a Goa. Vinha n'uma galeota, cercado pelos fidalgos velhos, seus companheiros de viagens e campanhas, com aquelle ar imponente e grave que a idéa das grandes cousas do tempo, comparadas ás edades antigas, punha no rosto dos homens lettrados. Nenhum tinha maior consciencia da grandeza do que o triumphador; nenhum, porém, teve mais força espontanea na vontade, mais lume na intelligencia, do que o outro o homem! Albuquerque, o Alexandre portuguez!

1 Livro de Duarte Barbosa, na Coll. de not. da Acad.,

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