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vimento da consciencia que, sem desvirtuar a força dos temperamentos, dava ás acções uma significação ideal. Por isso, ainda quando afundados nas escuridões da desesperança nos agitavamos, como os castelhanos, entre o quietismo jesuita e a penitencia inquisitorial, esmagando a vontade, immolando victimas a um deus de sangue e fogo, e pensando unicamente na conquista da bemaventurança e na expiação dos crimes, pela doação da terra inteira aos deuses do céo, casando a vida devota com a vida devassa: ainda então os sonhos do nosso instincto, creando espontaneamente a religião nova do sebastianismo, nos levantavam acima dos que, isentos de devaneios mysticos, viviam apenas dos choques e das antitheses de uma consciencia sem leme, arrastados miseravelmente pelo vento agreste do cynismo.

O traço que levanta o heroismo lusitano ás alturas de uma doutrina, fazendo dos Lusiadas a flôr magnifica de que a Araucana é apenas uma semente: esse traço que se imprime em todas as manifestações do tempo, que anima todos os heroes, que inspira a parodia do triumpho em Goa, e que de principio a fim caracterisa o poema de Camões, é o pensamento classico expresso n'estas palavras de João de Barros:

«A nação portugueza hoje mais que nenhuma conserva a gravidade e desejo de honra que antigamente sabia ter o povo romano». 1

E' a gravidade e desejo de honra que, no meio da desordem do individualismo, levantam e disciplinam o heroismo portuguez, dando-nos uma feição particular eminente sobre a força, a cobiça e a fé,

1 Paneg. de D. João III, 145.

que impellem simultaneamente todos os que na Renascença obedeceram á viração de liberdade, enchendo as velas da nau da aventura.

D. João de Castro, a figura mais expressiva por ser a mais complexa, sem ser a mais gigante de toda a pleiade portugueza, allia em si á curiosidade naturalista do celta, ao amor mystico da natureza, á ancia de saber propria do tempo, a força e a fé lusitana, idealisadas, porém, sem serem diminuidas, por esse desejo de honra de que falla João de Barros. Christão e portuguez, é um estoico á antiga. As opulencias do Oriente não o contaminam, senão até ao ponto de lhe tornarem a virtude, não um acto natural instinctivo, mas sim, e á maneira dos estoicos, um resultado da vontade consciente e apparatosa. Faz gala de ser honrado, o que para os espiritos candidamente puros é já um symptoma da perversão que se insinua até pelas mais intimas regiões da alma. Na hora da sua morte não se encontra um real em casa; e durante a doença não ha com que lhe comprar uma gallinha. Em Goa empenha as barbas para acudir ás urgencias do thesouro; e quando o rei lhe dá a quinta da Penha Verde, manda arrancar as arvores de fructo. Estes traços, em que o mysticismo do celta transparece, véem passados atravez da preoccupação do estoico. No meio da perversão dos costumes, não lhe basta ser virtuoso: é mister que todos o reconheçam. O desejo da honra e a gravidade, qualidades exteriores de aprumo e disciplina social, dominam, como de facto dominavam o querer dos portuguezes dos bons tempos.

N'isto consiste a redempção moral. Arrastados pelo destino á missão quasi providencial de descobrir os mundos ultramarinos, desempenhamo-nos

d'ella, ganhando um logar na historia da civilisação. Ficamos sendo alguem na série epica dos povos. Com as qualidades ingenitas do nosso temperamento construimos a nossa especie de heroismo, similhante ao grego dos Argonautas e ao semita dos carthaginezes ou assyrios; mas, acima d'essas expressões rudimentares da curiosidade, da cobiça, da fé e da violencia, pozémos em nossas consciencias um typo de honra e dignidade: esse typo classico ou romano que nos absorvia os desejos do pen

samento.

E', quanto a nós, esta moralisação da força que constitue o traço original do heroismo portuguez, e o nosso titulo eminente de gloria historica. Fomos os romanos da Renascença, protegidos por «Venus bella»

a gente Lusitana

Por quantas qualidades via nella
Da antiga tam amada sua Romana,
Nos fortes corações, na grande estrella
Que mostrárão na terra Tingitana,
E na lingoa, na qual, quando imagina,
Com pouca corrupção cre que he a Latina. 1

Mas este sentimento estreme, a cuja definição moral ou social temos vindo estabelecendo os caracteres, não era mais do que um aspecto do pensamento metaphysico nacional: o idealismo espiritualista que fórma a atmosphera luminosa em que os Lusiadas e Portugal se agitam. Camões não é só o epico portuguez da força e da fé, nem o epico da sciencia e do commercio: é tambem o vate do pensamento philosophico moderno.

1 C. 1, 33.

CAPITULO QUARTO

A Renascença

I

De todas as manifestações que determinou no Occidente europeu a conquista do Oriente pelos turcos, nenhuma foi maior, nem mais absorvente e commovedora, do que a crise religiosa. Despedaçado o nimbo de pessimismo ingenuo que durante seculos envolvêra o pensamento moderno; restauradas com amor as idéas e as creações artisticas da Antiguidade: todo o Meio-dia europeu como que acordou de um sonho, e com a vaga consciencia do tempo perdido em supplicios, lançou-se de braços abertos no optimismo da vida. O proprio papado se recordava dos tempos antigos em que a egreja triumphante de Constantino acclamava a grandeza do imperio; e pela mão de Leão x, com um desdem classico, encolhia os hombros perante o sussurro que, além do Rheno, faziam as prégações de Luthero, invejas fradescas» !

Com um forte instincto da harmonia, revelado principalmente pela esthetica, os homens reconheciam o caminho errado em que tinham seguido, e, parando, sem repudiarem Christo, queriam abraçal-o a Platão, abraçando Orpheu e Moysés n'uma synthese que entreviam superior ás allucinações do espirito mystico e á seducção da natureza inconsciente. Não seria possivel achar no proprio coração da Terra essa corôa gloriosa de amor, cujos espinhos tanto dilaceraram a cabeça humana?

Ficino, Pico de Mirandola, Policiano, Lourenço de Medicis, e toda a Italia pensante, crêem que sim; e por isso, n'aquella ancia palpitante de saber que caracterisa o tempo, manuseiam com a mesma fé as Sybillas e os Prophetas, commentam S. Paulo com Empedocles, espiritualisam o paganismo, sensualisam o christianismo mystico, e das imagens hieraticas da iconographia anterior, estatuetas ajoelhadas com as mãos supplices, levantando do seio dos seus nichos para céo as cabeças em gestos de agonia piedosa: trypticos dos altares em que, dentro de aureolas de ouro, virgens languidas, anemicas de devoção, cantam o seu martyrio: d'essas figuras mysticas em que se retratava o pensamento humano, extráem a estatuaria triumphante de Miguel Angelo e a pintura naturalista de Raphael e sobretudo de Leonardo.

Este néo-paganismo offendia a alma mystica das gentes do norte sombrio, onde as reminiscencias da Antiguidade não podiam acordar; pois só com os tempos modernos tinham entrado na civilisação quando emergiram dos seus bosques franjados de abetos, despegando-se como avalanches sobre a Europa cis-rhenana, conquistando-a e destruindo-a. Os impulsos barbaros de tempos, já distantes muitos

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