Que padeceo deshonra e vituperio Este Christo é o da Renascença. O velho Apellon do idealismo dorico tornou a humanisar-se, apparecendo, vivo e nú, a chorar nos presepes humildes, ou pendurado ao collo turgido da madona que o amamenta; surgindo do seio mystico do povo para inundar de gloria a mente dos poetas; transformando-se da realidade mais mesquinha na abstracção mais ethereamente sublime: Deste Deos homem, alto e infinito, O judeu e o protestante, os homens do livro, escravisados á lettra, agrilhoados aos textos, carecem d'essa bagagem religiosa: nós não, que trazemos a crença na piedade espontanea do pensamento. A dependencia do Papa é a segurança das nossas duvidas e o penhor da nossa liberdade; da mesma fórma que a vontade do Imperador nos deixa livre, a um povo de fidalgos, a acção do nosso braço. Eis-ahi como na Renascença raciocinava o hespanhol, castelhano ou portuguez, em opposição ao movimento protestante. Eis-ahi o estado mental que os Lusiadas exprimem: esse estado plastico da consciencia, acclamando tudo quanto a realidade offerecia ingenuamente bom, denodadamente forte, sensivelmente bello, e que por tudo isto parecia aos homens d'então absolutamente verdadeiro. Que admira, portanto, esta confusão moral e litteraria da Antiguidade e dos tempos christãos? Que admira o proposito de imitar Virgilio, se a gloria do Gama, piedoso como Eneas, era a apotheose de um povo que reproduzia o romano? D'ahi vem a justa-posição constante da mythologia classica e da christan, do olympo e do empyreo, a Biblia dando a mão a Homero, e, confundidos n'uma mesma apotheose, todos os symbolos em que a imaginação dos povos representou os seus ideaes: Do peccado tiverão sempre a pena E' que a alma creadora da Renascença, chamma viva, feita de fé e de vontade, absorvia e queimava tudo no seio da sua crepitação palpitante, levando os contrastes até ao paradoxo, e pondo Baccho a adorar o Espirito Santo: Ali tinha em retrato affigurada 1 C. III, 95. A companhia sancta está pintada Aqui os dous companheiros, conduzidos N'outro logar, é Tethys quem conta o martyrio de S. Thomé, com requintes de theologia, incitando os portuguezes á propagação da fé 2; Tethys que, para destruir o effeito paradoxal do episodio, cáe no paradoxo maior ainda de confessar do empyreo: Aqui so verdadeiros gloriosos Divos estão; porque eu, Saturno e Jano, Fingidos de mortal e cego engano; So pera fazer versos deleitosos Servimos. 3 N'outro ponto, é Baccho a desencadear o temporal, e o piedoso Gama soccorrendo-se á sua devoção: Divina guarda, angelica, celeste, 1 C. II, 11-2.- 2 C. x, 108-19.- 3 82. .4 C. VI, 81. Quem o soccorre, porém, é Venus, porque na estructura do poema, acima dos sentimentos religiosos dos homens, está o côro dos antigos genios em que a imaginação tem de corporisar ainda os elementos naturaes, pois que as creações amorphas da psychologia christan não teem essa capacidade. Na Renascença, o mundo era outra vez pagão, de um modo até certo ponto novo: como poderia exprimir-se, pois, na linguagem espiritualista da transcendencia medioval? O paradoxo dos Lusiadas é o de todas as artes da Renascença, e traduz o estado de plasticidade comprehensiva d'essa época. Quando, porém, a alma se eleva até ás culminações da piedade, como pincaros rasgando o ether, e os symbolos e mythos apparecem comparaveis á neblina dos valles vista do alto das montanhas: então resplende na sua nitidez ideal a palavra sagrada -Deus. O Gama sente-se penetrado e cáe de joelhos quando vê a terra de Ĉalecut: Soffrer aqui não pode o Gama mais, E quando tambem, dissipado o mêdo, surge a esperança viçosa, a alma enche-se de uma alegria purissima, em que da mesma fórma se dissipam os nevoeiros do symbolismo religioso. Assim que o Adamastor acabou a serie das suas prophecias funebres, o Gama, cheio de piedade: 1 C. vi, 92. levantando as mãos ao sancto coro Entre a piedade dos homens, entre a sua fé positiva e a região etherea das verdades metaphysicas expressas por uma theologia que procura ser orthodoxa, a imaginação creadora da Renascença põe como medianeira a Natureza, representando-a nos mythos litterarios herdados da Antiguidade. As approximações que vamos observar entre Virgilio e Camões não se devem considerar, portanto, como simples imitações litterarias, embora o cultismo classico as determinasse; pois esse mesmo cultismo penetrára tanto os espiritos, fazia tanto parte da consciencia contemporanea, que Virgilio, o medianeiro na Edade-média, apparecia agora como o positivo apostolo de um pensamento historico. Se o proprio Virgilio imitou filialmente a Homero, porque Eneas e os romanos via-os descenderem da Troya grega: Camões seguia na esteira da derrota virgiliana, por isso mesmo que tambem nos Lusiadas via os descendentes da gente romana. Desde o primeiro verso, logo na primeira proposição As armas e os barões assinalados se sente o proposito de vasar os Lusiadas nos moldes classicos da Eneida, que começa: Arma virumque cano; e de os vasar n'esses moldes, repetimos, não por uma fria imitação poetica, mas por 1 C. v, 60. |