Como isto disse, manda o consagrado Lhe mada mais que em sonhos lhe mostrasse Exactamente como na Eneida, em que o mesmo Mercurio, filho da Maia, é enviado á terra: Haec ait: et Maia genitum demittit ab alto; 2 e quando a Eneas diz: Eia! age, rumpe moras, é como quando repete ao Gama: «Fuge, fuge, Lusitano!» 3 Aqui, e por toda a parte, as reminiscencias virgilianas abundam. Nas prophecias de Jupiter a Venus, ácerca do futuro dos portuguezes na India, comparam-se-lhes os feitos aos de Antenor: nos proprios termos em que é descripta por Virgilio. i 2 Outro episodio patentemente imitado, é o do soccorro que Venus e as Nereides prestam á nau de Vasco da Gama, desviando-a dos recifes em que a traição dos pilotos de Mombaça queriam lançal-a. Convocado o seu batalhão de ondinas, Venus acode, e esse pequenino quadro de mythologia maritima. tem um movimento encantador: Ja na agoa erguendo vão, com grande pressa, Com mais furor o Mar do que costuma; Salta Nise; Nerine se arremessa Por cima da agoa crespa em força suma; De temor das Nereidas apressadas. Nos hombros de hum Tritão, com gesto aceso, Não sente quem a leva o doçe peso, Poem-se a Deosa com outras em dereito O caminho da barra, estão de geito Que em vão assopra o vento, a vella inchado; Poem no madeiro duro o brando peito, O quadro acaba por uma comparação virgiliana: Quaes para a cova as próvidas formigas, 2 traducção de Veluti ingentem formicae forris acervum A invocação a Calliope, que abre o canto terceié tão virgiliana como a abertura do canto primeiro: ro, Agora tu, Calliope, me ensina Nunc age... Erato... 4 e quando a formosissima Maria implora o pae, Affonso IV, n'essa prece incomparavel de sentimento grave que já citamos: 5 Não de outra sorte a timida Maria Fallando está que a triste Venus, quando Pera Eneas seu filho navegando. 6 A' morte de D. Affonso Henriques, o fundador da nação portugueza, succede exactamente o mesmo que por occasião de morrer Eurydice: 1 C. II, 20-22. 5 Pag. 40-1. 2 23. 3 Eneid. IV, 402. 6 C. III, 106. 4 Os altos promontorios o chorarão, Flerunt Rhodopeiae arces Altaque Pangaea, et Rhesi Mavortia tellus, A natureza inteira desfaz-se em lagrimas. O Gange, o Indo, e «toda a terra que pisaste» choraram tambem S. Thomé, o apostolo das Indias. No canto quarto, a conhecida exclamação do velho do Restello, 4 ao partir da armada de Vasco da Gama, é sem duvida inspirada por Horacio, na ode ao navio que levava Virgilio; 5 e no sonho magnifico de D. Manoel, a que n'outro logar voltaremos, deparam-se estes versos: 6 No tempo que a luz clara Foge e as estrellas nitidas, que saem, que são a transcripção dos virgilianos: Et jam nox humida cœlo Precipitat, suadent que cadentia sidera somnos. 8 A tempestade do canto sexto é um d'aquelles episodios em que melhor se vê o caracter imitativo 1 do pensamento da Renascença, que em Portugal ia até ao excesso de restaurar na propria lingua o diccionario latino. Camões, por exemplo, diz exicio por estrago e instructo por instruido. 2 Mas este proposito imitativo (que dá a quasi parodia do triumpho em Goa) assenta n'uma convicção profunda da alma moral e n'uma vibração energica da imaginação commovida pelo espectaculo de novas cousas. A tempestade dos Lusiadas, apesar de vasada nos moldes classicos, não é litteraria apenas: é vívida, é pintada por quem uma vez e muitas vezes assistiu ás batalhas do mar. O traço positivo e real domina: está-se a bordo de uma nau da India: Mas neste passo, assi promptos estando, E, porque o vento vinha refrescando, Não erão os traquetes bem tomados, Que amainassem; mas juntos, dando nella, O ceo fere com gritos nisto a gente |