«Alija, disse o mestre rijamente; Correm logo os soldados animosos Os ventos erão tais que não poderão Mostra a possante nao, que move espanto, A nao grande em que vay Paulo da Gama Hi summo in flucta pendent; his unda dehiscens Terram inter fluctus aperit. Eneid. 1, 106-7. Noto, Austro, Boreas, Aquilo querião As Alcioneas aves triste canto Nunca tam vivos rayos fabricou O gram ferreiro sordido que obrou Do enteado as armas radiantes ; Nem tanto o gram Tonante arremessou Os dous que em gente as pedras converterão. Quantos montes então que derribarão Que nunca pera o ceo fossem viradas; Tanto os mares que encima as revolvessem. Afastando-se de Virgilio, para seguir Homero, nos Lusiadas é Neptuno o forte agitador da terra, inimigo de Ulysses, quem ordena a Eolo que solte os ventos. Na Eneida, Eolo exorbita para comprazer a Juno, provocando o famoso Quos ego! neptunino. Mas se Juno, para induzir Eolo á insubordinação, lhe promette Deiopea, forma pulcher rima, Camões, invertendo a situação, transfere o pensamento a Venus. A protectora dos portuguezes, certa de que a tempestade é um maleficio de Baccho, decide seduzir os Ventos, soltando-lhes o bataThão das suas nimphas: Grinaldas manda pôr de varias cores Dos ventos a nojosa companhia, Que mais fermosas vinhão que as estrellas. 2 O amor é na Renascença omnipotente. O temporal amaina. O Gama socega: elle que soltára em portuguez as mesmas queixas de Eneas: O' ditosos aquelles que puderão O terque quaterque beati, Queis ante ora patrum, Trojae sub moenibus altis, A Troia lusitana são as fortalezas de Africa, para onde, no fim do seculo XVI, prevendo-se o desmoronamento do imperio oriental, se voltam as esperan 1 Eneid. 1, 70-5.—2 C. III, 87. -3 83. 4 Eneid. I, 94-6. ças nacionaes. No declinar das edades gloriosas, os povos preferem sempre pôr o seu ideal na negação do presente. Outro episodio virgiliano é o dos cantos setimo e oitavo, quando Paulo da Gama explica ao catual de Calecut a historia portugueza pintada nos toldos das naus. Na Eneida, o heroe, entrando no templo que Dido ergueu no bosque sagrado, pela primeira vez seguro de si e crente no futuro, emquanto espera pela rainha, vae admirando a fortuna de Carthago e a habilidade dos seus artistas, que ao longo dos muros deixaram pintados os combates de Illion na successão dos tempos: illiacas ex ordine pugnas: 2 Purpureos sam os toldos, e as bandeiras Que tanto que ao Gentio se apresenta, Essa historia portugueza, sobre a qual teremos de nos demorar mais tarde, enraiza-se na profundidade do tempo, e, á moda classica, os lusitanos vão procurar em fabulas os pergaminhos de aristocracia que só o tempo confere. A litteratura exprime n'isto, como em tudo, os instinctos primitivos. Tambem Virgilio entendia necessario filiar a historia de Roma na de Troya, que ia perder-se nos crepusculos da mythologia homerica. 1 C. VII, 73-7; VIII, 1-43. 2 Eneid. 1, 450-6.-3 C. VII, Em Portugal, essa preoccupação era dominante no seculo XVI. João de Barros, contemporaneo, irmão em genio de Camões, e porventura seu mentor erudito, escrevia: «Jobel, filho de Jafet e neto de Noé, depois do diluvio, veiu ter a Hespanha, a qual d'elle e de seus descendentes se povoou: estes se governam por Respublicas e Comunidades. O primeiro homem, se quizermos dar fé ás fabulas antigas que n'ella, e em Portugal entrou com exercitos, foi Bacho; depois os curetes, gente da Grecia, seguindo a Gargores seu Capitão, se fizerão senhores della, o qual Gargores foi excellente Principe, e ensinou aos povos de Hespanha muitas cousas necessarias para a vida, e proveito comum, por onde os successores deste pacificamente reinarão até o tempo d'ElRey Girião, em cujo tempo, vindo Hercules o venceo, e nella ordenou novo estado. Depois, segundo dizem, reinou Hispalo, de quem se nomeou Hespanha, mas da successão dos Reys que d'este vierão e de como se acabarão a fama é incerta...>> 1 Eis a historia: da mesma fórma que todas as invenções religiosas servem para aguentar a fé, tambem todas as tradições se fundem para determinar a origem dos povos: Noé, Baccho, Hercules, a Biblia e o Olympo, a Grecia, o Oriente e a Judea, presidem á historia da Hespanha. Camões não faz mais do que repetir: Esta foy Lusitania, dirivada De Luso ou Lysa, que de Bacho antigo 1 Barros, Paneg. (1791) p. 11-2. 2 C. III, 21. |