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«Alija, disse o mestre rijamente;
Alija tudo ao mar; não falte acordo.
Vão outros dar á bomba, não cessando;
A' bomba! que nos imos alagando».

Correm logo os soldados animosos
A dar á bomba; e, tanto que chegarão,
Os balanços que os mares temerosos
Derão á Nao num bordo os derribarão.
Tres marinheiros duros e forçosos
A menear o leme não bastarão:
Talhas lhe punhão dhua e doutra parte,
Se aproveitar dos homens força e arte.

Os ventos erão tais que não poderão
Mostrar mais força dimpeto cruel,
Se pera derribar então vierão
A fortissima torre de Babel.
Nos altissimos mares, que crecerão,
A pequena grandura dhum batel

Mostra a possante nao, que move espanto,
Vendo que se sostem nas ondas tanto.

A nao grande em que vay Paulo da Gama
Quebrado leva o mastro pello meyo,
Quasi toda alagada; a gente chama
Aquelle que a salvar o mundo veyo.
Não menos gritos vãos ao ar derrama
Toda a Nao de Coelho, com receyo,
Com quanto teve o mestre tanto tento
Que primeiro amainou que desse o vento.

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Hi summo in flucta pendent; his unda dehiscens Terram inter fluctus aperit.

Eneid. 1, 106-7.

Noto, Austro, Boreas, Aquilo querião
Arruinar a machina do mundo;
A noite negra e feya se alumia
Cos rayos em que o Polo todo ardia.

As Alcioneas aves triste canto
Junto da costa brava levantarão,
Lembrando-se de seu passado pranto,
Que as furiosas agoas lhe causarão.
Os Delfins namorados entre tanto
La nas covas maritimas entrarão,
Fugindo á tempestade e ventos duros,
Que nem no fundo os deixa estar seguros.

Nunca tam vivos rayos fabricou
Contra a fera soberba dos Gigantes

O gram ferreiro sordido que

obrou

Do enteado as armas radiantes ;

Nem tanto o gram Tonante arremessou
Relampados ao mundo fulminantes
No gram diluvio, donde sos vierão

Os dous que em gente as pedras converterão.

Quantos montes então que derribarão
As ondas que batião denodadas!
Quantas arvores velhas arrancarão
Do vento bravo as furias indinadas!
As forçosas raizes não cuidarão

Que nunca pera o ceo fossem viradas;
Nem as fundas arêas que podessem

Tanto os mares que encima as revolvessem.

Afastando-se de Virgilio, para seguir Homero, nos Lusiadas é Neptuno o forte agitador da terra, inimigo de Ulysses, quem ordena a Eolo que solte os ventos. Na Eneida, Eolo exorbita para comprazer a Juno, provocando o famoso Quos ego! neptunino. Mas se Juno, para induzir Eolo á insubordinação, lhe promette Deiopea, forma pulcher

rima, Camões, invertendo a situação, transfere o pensamento a Venus. A protectora dos portuguezes, certa de que a tempestade é um maleficio de Baccho, decide seduzir os Ventos, soltando-lhes o bataThão das suas nimphas:

Grinaldas manda pôr de varias cores
Sobre cabellos louros á porfia.
Quem não dirá que nacem roxas flores
Sobre ouro natural, que amor infia?
Abrandar determina por amores

Dos ventos a nojosa companhia,
Mostrando-lhe as amadas Nimphas bellas,

Que mais fermosas vinhão que as estrellas. 2

O amor é na Renascença omnipotente. O temporal amaina. O Gama socega: elle que soltára em portuguez as mesmas queixas de Eneas:

O' ditosos aquelles que puderão
Entre as agudas lanças Affricanas
Morrer, em quanto fortes sostiverão
A sancta Fé nas terras Mauritanas:
De
quem feitos illustres se souberão,
De quem ficão memorias soberanas,
De quem se ganha a vida com perdella,
Doce fazendo a morte as honras della! 3

O terque quaterque beati,

Queis ante ora patrum, Trojae sub moenibus altis,
Contigit oppetere!, 4

A Troia lusitana são as fortalezas de Africa, para onde, no fim do seculo XVI, prevendo-se o desmoronamento do imperio oriental, se voltam as esperan

1 Eneid. 1, 70-5.—2 C. III, 87. -3 83. 4 Eneid. I,

94-6.

ças nacionaes. No declinar das edades gloriosas, os povos preferem sempre pôr o seu ideal na negação do presente.

Outro episodio virgiliano é o dos cantos setimo e oitavo, quando Paulo da Gama explica ao catual de Calecut a historia portugueza pintada nos toldos das naus. Na Eneida, o heroe, entrando no templo que Dido ergueu no bosque sagrado, pela primeira vez seguro de si e crente no futuro, emquanto espera pela rainha, vae admirando a fortuna de Carthago e a habilidade dos seus artistas, que ao longo dos muros deixaram pintados os combates de Illion na successão dos tempos: illiacas ex ordine pugnas:

2

Purpureos sam os toldos, e as bandeiras
Do rico fio sam que o bicho gera;
Nellas estam pintadas as guerreiras
Obras que o forte braço ja fizera :
Batalhas tem campais aventureiras,
Desafios crueis pintura fera,

Que tanto que ao Gentio se apresenta,
Atento nella os olhos apacenta. 3

Essa historia portugueza, sobre a qual teremos de nos demorar mais tarde, enraiza-se na profundidade do tempo, e, á moda classica, os lusitanos vão procurar em fabulas os pergaminhos de aristocracia que só o tempo confere. A litteratura exprime n'isto, como em tudo, os instinctos primitivos. Tambem Virgilio entendia necessario filiar a historia de Roma na de Troya, que ia perder-se nos crepusculos da mythologia homerica.

1 C. VII, 73-7; VIII, 1-43. 2 Eneid. 1, 450-6.-3 C. VII,

Em Portugal, essa preoccupação era dominante no seculo XVI. João de Barros, contemporaneo, irmão em genio de Camões, e porventura seu mentor erudito, escrevia:

«Jobel, filho de Jafet e neto de Noé, depois do diluvio, veiu ter a Hespanha, a qual d'elle e de seus descendentes se povoou: estes se governam por Respublicas e Comunidades. O primeiro homem, se quizermos dar fé ás fabulas antigas que n'ella, e em Portugal entrou com exercitos, foi Bacho; depois os curetes, gente da Grecia, seguindo a Gargores seu Capitão, se fizerão senhores della, o qual Gargores foi excellente Principe, e ensinou aos povos de Hespanha muitas cousas necessarias para a vida, e proveito comum, por onde os successores deste pacificamente reinarão até o tempo d'ElRey Girião, em cujo tempo, vindo Hercules o venceo, e nella ordenou novo estado. Depois, segundo dizem, reinou Hispalo, de quem se nomeou Hespanha, mas da successão dos Reys que d'este vierão e de como se acabarão a fama é incerta...>> 1

Eis a historia: da mesma fórma que todas as invenções religiosas servem para aguentar a fé, tambem todas as tradições se fundem para determinar a origem dos povos: Noé, Baccho, Hercules, a Biblia e o Olympo, a Grecia, o Oriente e a Judea, presidem á historia da Hespanha. Camões não faz mais do que repetir:

Esta foy Lusitania, dirivada

De Luso ou Lysa, que de Bacho antigo
Filhos forão, parece, ou companheiros
E nella antam os Incolas primeiros. 2

1 Barros, Paneg. (1791) p. 11-2.

2 C. III,

21.

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