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Vos mesquinhos e o accordo para a conquista redemptora do Oriente avassallado pelo turco. Depois da victoria, a fortuna: foram-se todas as sombras, sararam-se todas as feridas! N'uma atmosphera azul, o mundo esplendido girará cantando !

Foi n'isto que dos lados do Rheno estalou o protesto de Luthero. Essa viração do eterno odio septentrional pelo Meio-dia, soltando feroz a guerra entre christãos, pareceu outra invasão de barbaros, dissipando as nuvens brancas de esperança que tremiam no azul illuminado do céo.

O odio, o desespero, dividindo desde então os povos europeus, succederam á esperança e ao amor. E, se na poesia camoneana achamos a expressão dos primeiros sentimentos, n'ella achamos com egual vigor a condemnação dos réos da desgraça do mundo, e o incitamento ao plano que já agora só viria a ter como epilogo funebre a catastrophe de Alcacerquibir, em que uma nação dessangrada foi conduzida ao supplicio pelo braço desvairado de um rapaz heroicamente doido.

Camões escrevia no momento agudo da crise da Reforma (o Concilio de Trento durou desde 1545 até 1563) ouvindo o estalar dos bacamartes na funebre noute de S. Bartholomeu (1572). O «falso rei» que o poeta invectiva é Saladino; e o «Gallo indigno» é Francisco I, 1 que se alliou a Henrique VIII Ꮎ aos lutheranos para roubar a Carlos v o ducado de Milão:

1

Pois de ti, Gallo indigno, que direy?
Que o nome Christianissimo quiseste,
Nam pera defendelo, nem guardalo,
Mas pera ser contra elle e derribalo. 2

1 C. VII, 6. 2

6.

A condemnação abrange todos:

Vedelos Alemães, soberbo gado,
Que por tam largos campos se apacenta
Do successor de Pedro rebelado;
Novo pastor e nova ceita inventa.
Vedelo em feas guerras occupado
(Que inda co cego error se nam contenta),
Não contra o superbissimo Otomano,
Mas por sair do jugo soberano.

Vedelo duro Ingles, que se nomea
Rei da velha e sanctissima cidade
Que o torpe Ismaelita senhorea
(Quem vio honra tam longe da verdade?):
Entre as Boreais neves se recrea;
Nova maneira faz de Christandade:
Pera os de Christo tem a espada nua,

Nam por tomar a terra que era sua. 1

No norte, o sacrilegio protestante accende a colera piedosa do poeta: no sul, a devassidão dos costumes inflamma-o:

Pois que direy daquelles que em delicias,
Que o vil ocio no mundo traz consigo,

Gastão as vidas, logrão as divicias,

Esquecidos de seu valor antigo?

Nascem da tyrania inimicicias,

Que o povo forte tem de si inimigo;
Contigo, Italia, fallo, ja sumersa

Em vicios mil e de ti mesma adversa. 2

O mundo christão apparece-lhe com effeito n'um cahos sobre que paira a força insubmettida do turco:

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O' miseros Christãos! pola ventura
Sois os dentes de Cadmo desparzidos,
Que hus aos outros se dão á morte dura,
Sendo todos de hum ventre produzidos?
Nam vedes a divina sepultura

Possuida de cães, que sempre unidos
Vos vem tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se famosos pela guerra? 1

A musa da indignação arrasta Camões pelos cabellos, e, vendo o mundo inteiro perdido, appella para a sua patria, pedindo-lhe o esforço heroico da redempção de Christo:

Vós, portugueses poucos, quanto fortes
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que á custa de vossas varias mortes
A lei da vida eterna dilatais:

Assi do çeo deitadas sam as sortes,
Que vós por muito poucos que sejais
Muito façais na sancta Christandade :

Que tanto, ó Christo, exaltas a humildade! 2

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é

A' geração dos lusos «que tam pequena parte sois no mundo» 3, a ella que cumpre remir o Santo Sepulchro e terminar a epopeia das Cruzadas, engeitada pelo «Gallo indigno» e esquecida pela Italia: a ella e por isso mesmo que se mostrou capaz do maior feito da época-a descoberta da India, grande golpe de montante descarregado em cheio na força da Turquia.

Eis-ahi o pensamento politico dos Lusiadas, expresso claramente nos mesmos termos pela bocca do velho do Restello. 4 O pensamento religioso é o catecismo de Trento. A idéa de governo é o im

1 C. VII, 9. 2 3.

3

- 2.

4 C. IV, 94-104.

perialismo, em cujo berço nascêra o sol da Renascença e em cujo regaço polluido elle se afundava agora. O imperio fazia-se tyrannia; o racionalismo piedoso transformava-se em lamismo papista.. Assim as idéas se corrompem em contacto com a realidade.

O imperialismo camoneano é, porém, tão lidimo ainda como a sua religião. Se nas turbas não vê mais do que co soberbo povo duro», 1 isto é, um elemento ou um material para a construcção artistica do estado; se a vontade dos reis, que são a chave da abobada social, ha de ser absoluta, nem «póde ser por outrem derogada»; se elles são supremos senhores dos seus subditos; se os vassallos. são membros de um corpo de que o rei é cabeça: a verdade, porém, é que tudo isso presuppõe no rei qualidades eminentes.

2

3

E' o que ao poeta diz a historia patria, porque em Portugal

o reino, de altivo e costumado
A senhores em tudo soberanos,
A rei não obedece nem consente

Que não for mais que todos excellente. 5

Monarchia e religião, pois, tudo se depura nocadinho da poesia á chamma intensa da nobreza e da lealdade lusitana. O cerebro ingente de Camões, em que a luz do heroismo nacional vem reflectirse, fundindo-se como n'uma lente, despede o raio e incendeia Portugal na ambição ultima da sua existencia. Felizes são os povos que morrem como o sol, despedindo clarões!

1 C. II, 79.-2 C. VIII, 72. 5 C. III, 93.

3 C. 1, 10.4 C. 11, 84.

III

Desenrolou-se perante nossos olhos o espectaculo das opiniões e das façanhas da Renascença camoneana. Vimos o genio humano e a sua força creadora na efflorescencia plena das idéas de uma época: resta vêr agora as raizes que essa vegetação tem no solo profundo dos pensamentos racio

naes.

Vimos o imperialismo nascido da idéa de uma auctoridade positiva e immanente, que é a propria alma da monarchia, ou principado, concebido artisticamente, de uma só peça. Tem por fim a utilidade dos povos; tem por bussola o conhecimento das cousas; tem por definidores Erasmo, Bodin, Saavedra, de que Machiavel é apenas a aberração convertida em doutrina. Differe visceralmente da concepção anarchica, anti-esthetica, negativa sómente e inorganica do communalismo republicano, parallelo á confissão de Augsburgo. João de Leyde é a aberração correspondente á de Machiavel no polo opposto. Um exagerou a auctoridade ao ponto de a tornar superior á moral, levantando absoluto o principio da razão d'Estado; outro proclamou a anarchia individualista como expressão verdadeira do communalismo delirante.

Na religião succede parallelamente o mesmo. Após o momento de liberdade luminosa proveniente da resurreição da Antiguidade, quando se espera e se crê no estabelecimento definitivo da paz e felicidade das consciencias, vem a maior crise dos tempos modernos. E' a Reforma com os seus

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