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Ha de sair quem negue ter defesa,
Quem negue a Fé, o amor, o esforço e arte
De Portugues e por nenhum respeito
O proprio Reino queira ver sogeito?

Como? não sois vos inda os descendentes
Daquelles que debaixo da bandeira
Do grande Enriquez, feros e valentes,
Venceram esta gente tam guerreira?
Quando tantas bandeiras, tantas gentes
Poseram em fugida, de maneira

Que sete illustres Condes lhe trouxerão
Presos, afora a presa que tiverão?

Com quem forão contino sopeados
Estes, de quem o estais agora vós,
Por Dinis e seu filho, sublimados,
Senão cos vossos fortes pais e avós?
Pois se com seus descuidos ou peccados
Fernando em tal fraqueza assi vos pos,
Torne-vos vossas forças o Rei novo,
Se he certo que co Rei se muda o povo.

Rei tendes tal que se o valor tiverdes
Igual ao Rei, que agora alevantastes,
Desbaratareis tudo o que quiserdes,
Quanto mais a quem ja desbaratastes;
E se com isto em fim vos não moverdes
Do penetrante medo que tomastes,
Atay as mãos a vosso vão receio,
Que eu so resistirey ao jugo alheio.

Eu so com meus vassalos e com esta
(E, dizendo isto, arranca mea espada)
Defenderey da força dura e infesta
A terra nunca de outrem sojugada ;
Em virtude do Rei, da patria mesta,
Da lealdade, ja por vós negada,
Vencerey não so estes adversarios,
Mas quantos a meu Rei forem contrarios». 1

1 C. IV, 14-19.

Eis-ahi como o patriotismo portuguez se elabora, definindo-se progressivamente no sentido da abstracção. Funda-se no sentimento ingenito da lealdade que em Portugal nasce, como nascêra em Roma, das condições hostis em que a nação se formára, por um acto de vontade contra os preceitos espontaneos da natureza ambiente. Affirma-se primeiro na esphera pessoal da fidelidade á amante e ao principe; depois levanta-se para se tornar um voto quasi religioso a esse sêr incorporeo que avassalla todos os corações com uma paixão tão viva como as paixões naturaes. A Patria é a amante e o principe!.

E este desdobramento do amor e da lealdade, pela abstracção, corresponde ao progresso da sociedade no seu organismo. E' a propria alma d'esse organismo vivo, que agora canta unisono acclamando o Mestre d'Aviz victorioso em Aljubarrota. Rasgam-se os horisontes de edades novas a um povo que apparece consciente da sua força, vibrante no seu enthusiasmo, emergindo do passado obscuro em que o patriotismo se elaborava ainda indefinido nos nimbos de um instincto de independencia pessoal: sentimento negativo apenas, sem o valor de uma affirmação categorica do pensamento, embora sempro tivesse sido, desde o dia de Guimarães, um protesto energico da vontade.

Da mesma fórma, em Roma, as condições do estabelecimento primitivo da cidade crearam logo a energia activa para a conservação; e essa energia, expandindo-se, desdobrando-se, emergindo da confusão obscura do naturalismo para a atmosphera luminosa das idéas, produziu pela primeira vez no mundo o phenomeno moral do patriotismo, que a analogia das condições e uma similhança de histo

ria produziam em Portugal. Assim os portuguezes se acreditavam, e com razão, novos romanos.

Porque não era só na definição psychologica do caracter que reproduziam Roma: era tambem nos traços geraes da historia social. Tambem Roma fôra primitivamente um povo de lavradores-soldados; tambem depois trocou o arado pelo remo, a terra pelo mar, sacrificando o desenvolvimento social e economico da metropole, á embriaguez das conquistas, á fascinação e á dilatação do imperio por mundos tão desconhecidos para elles, como eram para nós os ultramarinos.

II

São exactamente, em geral, as nações pequenas, construidas como Portugal em hostilidade com as condições naturaes de formação e expansão politica, aquellas que mais acceso mostram o patriotismo, nervo intimo da sua existencia e penhor da sua duração. A' irmandade nascida de um sangue commum, ou de interesses identicos determinados pela geographia, substituem taes povos a irmandade fundada no sentimento quasi religioso de amor por uma abstracção, synthese das vontades communs que os romanos denominaram Patria.

A Patria não é o chão onde nascemos, porque o romano, inventando a ficção juridica, alargou o principio da adopção da familia á sociedade, e o estrangeiro era tão romano como aquelle que nascêra em Roma. Pois não é toda a Italia uma Roma, desde que o fôro romano se estendeu a toda a penin

sula? Pois não é toda a Europa, o mundo inteiro, uma Roma, depois de Caracalla ter generalisado (212) esse fôro ao imperio? Que melhores e mais genuinos romanos ha na Europa, do que esses hespanhoes cuja falla já Cicero sómente achava pingue quippe atque peregrinum, de sabor forte e um tanto estrangeirado?

Este processo de assimilação, ou adopção politica, praticado em Roma, e origem da extraordinaria expansão do seu imperio, é o que se observa, em menores proporções sim, e de outra fórma, mas essencialmente identico, em Portugal. O principe que tornou de facto independente o condado portuguez, permittindo a seu filho a fundação do reino (se porventura esse reino não existia já quando D. Thereza se chamava a si propria regina de Portugal): esse principe era francez ou burgundio. Com elle vieram para a sua côrte e para os seus exercitos numerosos aventureiros de além dos Pyreneus. O primeiro rei portuguez, para effectuar a conquista de Lisboa, e os successores para ganharem aos mouros o sul do reino, assoldadaram repetidamente o serviço dos Cruzados; e os foraes registram a importancia das doações feitas principalmente aos frankos, de que o nome se conserva ainda em mais de uma villa portugueza. E todos esses elementos estrangeiros que cooperavam para a defeza e sustentação do baluarte portuguez foram assimilados ou aportuguezados por completo, embora a genealogia e a onomastica provem hoje ainda a verdade da historia.

Na crise de 1383 Portugal apparece outro. Fundidos e assimilados, os elementos constitutivos da nação tinham adquirido já o poder de organisação bastante para ganhar uma consciencia; e é por isso

que o movimento fundador da segunda dynastia se nos apresenta como um acto popular ou collectivo, uma expressão positiva de vontade nacional, emquanto as agitações anteriores não passavam de actos pessoaes ou de classe, revoltas de individuos, insurreições de cidades, luctas com o clero, ou protestos da nobreza. Vontade e pensamento que enfeixasse todas as forças e todas as vibrações do povo, de um modo summario e synthetico, não havia, antes de 1383, senão nos actos dos principes que obedeciam aos impulsos da propria ambição. Inconsciente, essa ambição continha o pensamento nacional que, desabrochando no fim do seculo XIV, daria alma, vontade e força a um povo inteiro para vencer em Aljubarrota, repellindo o dominio de Castella,

Desde então Portugal existiu como pensamento e como vontade. Viu-se uma alma animar este sêr collectivo que se chamou a nação portugueza. Mas n'esse proprio momento se viu tambem dar-se uma outra invasão e começar outro periodo assimilador. E' do tempo de D. João I, que casou com uma princeza ingleza, a introducção dos elementos saxonios e das idéas cavalheirescas; e a importancia d'esta nova assimilação vê-se nas chronicas e nos nomes pessoaes novos, em muitos casos, porém, com effeito, adoptados por imitação dos heroes da Tavola-redonda,

Na éra gloriosa que se abre a Portugal com a dynastia de Aviz, edade da nossa grandeza, periodo aureo da nossa força e gloria, não ha patria mais aberta, nem sociedade mais cosmopolita do que esta. Quando o infante D. Henrique institue a escóla de Sagres, ninho d'onde partem, no seu vôo atravez dos mares, as armadas portuguezas, as

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