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III

Agora, que já classificamos o poema, depois de discorrermos sobre a natureza da arte e o caracter d'essa fórma especial d'ella, chamada poesia, é tempo de vêrmos os dotes do poeta, que para si tomou a gloriosa empreza de cantar um povo heroico em uma epocha de heroes.

A qualidade essencial nos poetas é a sensibilidade. A alma ha de vibrar-lhes com energia e persistencia ao mais leve sopro da intuição. Nas artes que produzem symbolos representativos materiaes, como as chamadas artes plasticas, comprehende-se que uma tensão excepcional da intelligencia possa produzir resultados confundiveis com os que sáem dos estados patheticos da alma. Mas na poesia não, nem na musica: embora n'esta ultima o caracter vago e indefinido do symbolo sonoro possa originar, em quem ouve, um estado pathetico differente ou opposto ao da intuição do artista, e até variavel no ouvinte conforme o estado de espirito em que se encontra. E' esse o limite, mas é tambem o condão excepcional da musica.

A palavra, porém, é mais nitida e expressiva, embora a poesia partilhe, até certo ponto, as propriedades da musica, no rithmo do verso e na onomatopea. O musico e o poeta, porém (e o poeta principalissimamente), cujos estados mentaes são os symbolos commoventes de quem os escuta, hão de ter a alma afinada como harpa eolia, que, suspensa nos ramos da arvore da vida, vibre cantando hymnos e elegias ao sopro das virações do senti

mento. E' por isso, pois que a vida se compõe mais de amarguras do que de alegrias; é porque as sensações violentas do proprio enthusiasmo consomem tanto ou mais do que os collapsos da desesperança, ou as crises da afflicção; é porque o poeta vive pela imaginação, n'um instante, a vida de muitos homens: que a sua existencia, em regra, é um tecido de infortunios e um longo soluço abafado cruelmente pela morte. Delicioso infortunio, porém, o d'estas victimas da humanidade! Pagamos-lhes todos em amor a paixão que soffreram por nós, para nos revelarem, como é seu destino, alguns raios da luz que rebrilha nos horisontes crepusculares do sentimento, inapercebiveis á vista simples.

é

Póde estabelecer-se como regra que um poeta valeu tanto mais, quanto mais desgraçado foi na sua vida. A idéa de um poeta feliz, farto e satisfeito, antipathica ao instincto popular, sempre seguro. Um poeta é uma paixão que encarnou em figura humana; e o proprio de todas as paixões é o infortunio, por isso mesmo que, na vida, a fortuna provém da ponderação, do equilibrio, do juizo, contrario a toda a especie de cogitações enthusiastas.

Antes de proseguirmos convem portanto deixar assente que o infortunio da vida de Camões, os seus tormentos e a sua brevidade, não são cousas que devam commover os juizos do critico; embora possam e devam recordar-nos a imperfeição constitucional da existencia humana. Não se concebe um Camões feliz no meio da sociedade desvairada do tempo de D. João III, ou de D. Sebastião, e mais ainda no meio da chatinagem e da orgia da India. Póde affirmar-se que o poeta não teria sido quem foi, se, em vez de partilhar a sorte de outros poetasheroes que cantou-de Duarte Pacheco, o que es

creveu com fogo a ode homerica de Cambalaan; de Albuquerque, o que escreveu com raios a epopeia de um imperio alongado desde a Arabia até á China

tivesse deixado numerosa prole, aconchegada de meios, ennobrecida, ainda que não attingisse a grandeza dos aventureiros sem escrupulos, pelo menos na mediocridade dourada que Horacio, no tempo de Augusto, e no nosso seculo classico João de Barros, gosavam contentes, esfregando as mãos n'uma satisfação egoistamente quieta.

A vida do heroe e a vida do poeta são um martyrio permanente: um pelos impulsos da ambição activa, outro pela vehemencia das intuições devorantes. E quando a vis poetica toma, como em Camões, o caracter epico, a sua alma vibrante estremece a um tempo com as crises do sentimento e com as crises egualmente commoventes do patriotismo, da philantropia e da religião. Deus, os homens, a patria, a sociedade e a historia, o passado, o presente e o futuro, a terra e os céos infinitos, agitam-se-lhe na imaginação candente, revolvendo-se em torno d'esse problema nodal da affectividade humana, da affinidade electiva, do amor pessoal, do eterno feminino, da mulher, emfim, que, sendo o proprio coração de tudo, se torna o symbolo por excellencia poetico da existencia.

Quem quizer medir o grau de capacidade intuitiva de um poeta, estude-lhe as mulheres: está ahi a prova da sua sensibilidade-da sensibilidade que é a faculdade primaria, fonte, berço, ou nucleo de todas as outras.

Nos Lusiadas ha tres mulheres: Venus, Maria a formosissima, e a linda Ignez. Em todas ellas se vê o traço fundamental do caracter feminino: a meiguice. São todas tres medianeiras; e os tres episo

dios femininos formam porventura os melhores, e, decerto, dos dez ou doze melhores episodios da epo- . peia. São todas tres submissas, mas activas; e o feminino eterno do poeta vae crescendo, desde o amor naturalista de Venus, cinzelada com um buril cellinesco, até ao martyrio augusto de Ignez, tendo de permeio a voz eloquente de Maria, quando implora de seu pae a salvação da familia querida. N'estas tres figuras está a mulher inteira, completamente feita de abnegação. Amante, esposa e martyr: n'estas tres palavras se resume a essencia d'aquellas que, junto de nós, são até certo ponto o symbolo real da existencia, porque são a poesia da especie.

O poeta que, na Renascença, tambem possuiu mais funda a intuição da alma natural do homem, Shakespeare, fez das suas mulheres, Ophelia, Desdemona, Julietta, um ramalhete de açucenas mysticas, em que a alvura virginal, a pureza immarcessivel, a abnegação e o martyrio, compõem o quadro completo do eterno feminino. A intuição historica, levando-o a desenhar Cleopatra com os proprios tons d'essa aberração desnatural, não pervertia, porém, a sua intuição psychologica; porque as suas mulheres typicas, de invenção propria, creadas pela imaginação do poeta, essas, fazia-as como as fez a alma tambem celtica de Camões.

E se o caracter psychologico da intuição shakespereana leva principalmente o poeta para a dissecção dos estados da alma individual, analysando os sentimentos e as paixões, e sendo por ahi conduzido ao pessimismo espontaneo que o exame do homem interior provoca sempre: o seu lyrismo satisfaz-se colhendo no vasto matagal das paixões esses lyrios de candidez feminina, tão puros, tão ethereos e lu

minosos, como as mulheres de Camões, o grande poeta lyrico, o grande poeta epico, para quem por seu lado basta a dissecção da propria alma, uma vez que o genio o chama de preferencia a cantar e applaudir a grandeza de um povo, o heroismo de uma façanha e a magnificencia optima do Universo!

O primeiro momento de revelação feminina em Camões, é Venus. A fabula dá-lhe as tintas para essa encantadora pintura, que se destaca, dourada. pelo sol, voando em ondas de um azul purissimo. A Venus meiga e amorosa da mythologia grega, havia de transformar-se, com effeito, na esposa classica, e bater as suas azas para o ideal da martyr christan de Venus vão saír Maria e Ignez.

Em protecção dos novos argonautas, Venus vae implorar o pae omnipotente:

E, como hia afrontada do caminho,
Tão fermosa no gesto se mostrava
Que as Estrellas e o Ceo e o Ar vizinho

E tudo quanto a via namorava;

Os crespos fios douro se esparzião
Pelo colo, que a neve escurecia ;
Andando, as lacteas tetas lhe tremião,
Com quem Amor brincava e não se via;
Da alva petrina flammas lhe saião,
Onde o minino as almas acendia;
Pelas lisas colunas lhe trepavão
Desejos, que como Era se enrolavão.

Com delgado cendal as partes cobre
De quem vergonha he natural reparo ;
Porem nem tudo esconde, nem descobre
O veo, dos roxos lirios pouco avaro,

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