Imagens das páginas
PDF
ePub

Discutido, criticado, defendido, com vivacidade e até com acrimonia, esse volume desappareceu rapidamente das estantes dos livreiros; e d'então até agora não o quiz reimprimir, por entender que, na sua primitiva fórma, ficava demasiadamente abaixo das exigencias do assumpto. Estava inçado de erros, continha puerilidades, carecia de ser refundido para não ser de todo indigno, nem do publico, nem, sobretudo, do culto que toda a minha vida tributei a Camões, e se acrisola tanto mais, quanto mais vou, ao descer para a velhice, vendo como desgraçadamente os tempos se repetem, e estes fins do seculo XIX se parecem com o acabar soturno do nosso seculo de ouro.

*

Annos depois, em 1880, já regresso á patria, e assistindo ao Centenario de Camões, tornou-me o desejo de refazer a obra de 1872; porém as labutações da vida não me deixaram aquelle remanso e quietação de animo indispensaveis para o trabalho critico.

Dir-se-hia então que Portugal inteiro acordava para o arrependimento, e que o verbo camoneano, descendo em lagrimas de fogo, incendiava as almas portuguezas n'um d'esses renascimentos que ás vezes as nações experimentam, sacudidas pelas lembranças da historia. O tempo chamava-nos, pois, a todos, velhos e moços, para o campo da acção; e o melhor modo de prestar culto a Camões era, em vez de lhe commentar as obras, seguir-lhe os conselhos, levantando em pé, gloriosamente, a patria que elle tanto amou.

Para o verdadeiro diluvio das expansões d'esse

tempo, contribui eu tambem com o meu voto, 1 e ao publico peço desculpa de o inserir n'este logar como documento da genuinidade d'estas considerações retrospectivas.

Alegram as festas de hoje, porque exprimem a alegria do povo. Ainda que elle apenas trate de se divertir nas funcções com que o Centenario se celebra, ainda assim é bom. Os mortos não dançam, nem cantam. Ainda que se diga santanario, ou septenario, e Camões se arrisque a uma canonisação á velha moda: ainda assim é bom. Se toda a gente fosse critico, friamente capaz de julgar e distinguir, todos seriam scepticos. E é indispensavel que ao lado do juiz se ouça o advogado, ao lado da critica a eloquencia. Nem faz mal um tudo nada de rhetorica. Os enthusiasmos e as illusões teem um nobre papel no concerto harmonico dos córos civicos. Uns teem a bossa da veneração admirativa, outros a bossa da independencia irreverente: cada qual, no seu logar, uma parte na orchestra.

E', porém, muito maior o numero dos primeiros do que o dos segundos, pela razão simples de que para admirar basta ter o coração aberto ás bellas impressões espontaneas. Para julgar e ser irreverente, é porém necessario ter nascido mais forte, ás vezes mais secco, e sempre susceptivel de governar o sentimento proprio — cousa rara. O povo, quando se extasia admirativamente, é incapaz de dar a razão do seu acto, porque é a si proprio que, por uma illusão subjectiva, se consagra no symbolo que venera. No dia de hoje Camões é ao mesmo tempo uma infinidade de typos para a infinidade de creaturas arrastadas pelo enthusiasmo do Centenario.

Para o atheu, é o atheu; para o republicano, é uma especie de Catão. O proprio petroleiro será capaz de achar no poeta um precursor; da mesma fórma que o erudito descobre um Camões scholar, e o reaccionario se acha retratado no amor do throno e do altar. O estouvado cria um Camões brigão; e o pacato e honrado mercador descrevel-o-ha homem de sereno porte, gestos medidos, bom filho, bom esposo, bom pae, economico, sabendo governar a vida,

1 No jornal O Commercio Portuguez. — Pórto, 10 de junho de 1880.

e capaz de ganhar dinheiro: um genio! bem diverso d'estes poetas de agora.

Tal é a sorte de todos os homens eminentes que o povo ergue á altura de symbolos.

Ao lado do povo estão, porém, os que se dizem seus interpretes. Esses asseguram-nos hoje que o enthusiasmo do Centenario accusa, acima de tudo, como synthese, a profunda vitalidade do nosso patriotismo.

Deve ser assim. A sociedade Primeiro de Dezembro affirma annualmente a mesma cousa; e todos os annos pelos fins de julho se ouvem foguetes e hymnos a proclamar o nosso amor pelo feliz systema que nos rege. Patria, Independencia e Carta sãoao que nos asseveram-veneradas com intimo fervor; e o calendario romano está a ponto de ceder o logar ao nosso calendario politico.

Será, porém, louco atrevimento lembrar agora, no delirio da festa, que amanhã, quando se dissipar a fumarada das salvas, e os eccos dos hymnos se tiverem irradiado e perdido, voltará a repetir-se a palavra de hontem, a triste opinião arraigada da desordem da nossa vida, dos perigos creados pelos nossos erros? O papel de cardeal-diabo, ou do escravo dos cortejos nos triumphadores na velha Roma, não é decerto brilhante, nem seductor, sem deixar por isso de ter sua nobreza.

As salvas, os hymnos, as procissões, os espectaculos, as luminarias, os foguetes, são cousas inoffensivas em si. A força dos sentimentos póde tornal-as excellentes ; mas a tonta illusão de um povo desvairado póde fazel-as perigosas. Os tiros ensurdecem, e o fumo cega. Estrondos e nuvens dissipam-se breve; e para além, fica o silencio e o vasio. Quando os tiros teem pontaria e balas o canhão, o resultado é mais seguro. Cáem os baluartes por terra, e das ruinas surgem cidades novas.

O nosso pensamento é porém inteiramente pacifico. Quereriamos que as salvas do Centenario ferissem para deitar por terra o miseravel casebre de intrigas, de miserias, de cobiças, de insensatez, em que habitamos. Quereriamos que os hymnos fossem leis sábias, para restaurar a nossa anemia intellectual e economica. Quereriamos ouvir os córos de um povo eloquente e audaz, conscio dos seus direitos, fiel aos seus deveres, paciente para o trabalho, virtuoso para comsigo, nobre para com todos. Quereriamos vêr banida a mediocridade insulsa, a petulancia arrogante e chocha, a simonia, a abjecção e azorragados todos os vendilhões.

[ocr errors]

Depois d'isso, as festas. O domingo vem no fim de seis dias de trabalho. Se este trabalho está feito, ainda bem! Folguem os que assim julgam, e bom proveito lhes faça.

Nós teimamos em acreditar que não está; e apesar do 9 de julho, apesar do 1.o de dezembro, apesar do dia de hoje, appellamos para uma prova mais segura, mais séria, mais difficil, embora menos espaventosa e brilhante do que os cirios e as luminarias. Camões escreveu um poema que foi um epitaphio, porque a sociedade que cantou acabou com elle. Os Lusíadas consagram as obras dos heroes. Pensamos nós acaso repetir-lhes as façanhas com o facil e commodo endeusamento do poeta ?

Perigosa illusão que pode levar a suppôr-nos felizes e meritorios! Quando os Lusiadas se leram ao rei, tudo eram festas e esperanças no reino. Preparava-se Alcacerquibir. E todos acreditavam - incluindo o poeta em pessoa se ia conquistar Marrocos com a setta que o Papa mandára a D. Sebastião...

que

O melhor modo de consagrar os heroes é repetir-lhes as façanhas. Decerto os tempos mudaram, e ninguem pensa hoje em redimir o sepulchro santo. Com os tempos vieram ambições, desejos, idéas novas; mas os meios com que as idéas vingam, foram sempre, serão sempre os mesmos. São o caracter, a virtude, o heroismo, que valem decerto mais do que todas as luminarias. Nunca as festas de Athenas foram maiores do que depois de tutelada, por incapaz, pelos romanos. A Grecia, porém, nos bellos tempos de Eschylo, repartia as suas forças entre as pelejas e os debates; e terminada a guerra, votada a lei, solemnisava as grandes cousas que fazia.

Nós, que abusamos demais das glorias conquistadas por nossos avós, suppondo que ellas bastam para nos justificarem a fraqueza e os vicios, devemos considerar o Centenario como um incitamento a melhor vida: um Confiteor e não um Gloria. Penitenciemo-nos, pois.

Se o Centenario ficar como expressão nova de uma basofia velha, melhor fôra não se ter feito.

*

Infelizmente, doze annos de factos mostraram que o enthusiasmo de 1880 ardeu como a palha,

produzindo um clarão ephemero, por não se alimentar a chamma com a lenha de sacrificio, abnegação e arrependimento, sem as quaes as nações podem agitar-se em accessos de epilepsia mais ou menos mansa, mas não podem restaurar a severa e serena consciencia da força.

Os Lusíadas, portanto, voltavam a ser uma saudade, dissipada a esperança de um momento. A critica tornava a exercer o seu papel de consoladora e mitigante, nas horas de desalento em que sentimos os braços quebrados para a acção. Čamões tornava a pertencer á historia de um passado extincto, desde que o bafo morno da impenitencia lhe varria para longe a imagem desenhada nos horisontes luminosos de um dia.

Muitas e muito boas obras, aqui e lá por fóra, vieram remoçar a litteratura camoneana. Aos trabalhos do visconde de Juromenha e do snr. Theophilo Braga, succederam-se as traducções de Storck e a sua vida do poeta; a de Burton, com os preciosos commentarios que a acompanham; a edição do Garcia da Orta, do snr. conde de Ficalho, e a sua vida do author dos Simples e Drogas; a edição verdadeiramente magistral de Sá de Miranda, da snr. D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos; para não fallar no sem numero de opusculos e monographias, entre os quaes alguns de superior merecimento, como, por exemplo, a Flora dos Lusiadas, do snr. conde de Ficalho, e o Escholiaste do snr. Vasconcellos Abreu.

Haverá tres annos, pois, vindo para mim dias, senão de mais descanço, pelo menos de maior socego de animo, entendi ser chegada a occasião de refundir este livro da minha mocidade, e a que por isso talvez ligava um carinho particular. Para nós, os es

« AnteriorContinuar »