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II

SENÕES

C

Oм o seu livro Antídoto da Língua Portu

guesa, belamente impresso na Holanda,

escrito porém num estilo peganhento e oferecido a D. João V em dedicatória datada de Janeiro de 1710, queria António de Melo da Fonseca (pseudónimo de José de Macedo) introduzir na nossa linguagem, por decreto régio e a par de outros melhoramentos não menos arrojados, a substituïção radical dos ditongos nasais por outras formas mais próximas do italiano, do castelhano ou do latim.

Queria que disséssemos LADRONE e SERMone, em vez de ladrão e sermão; IRMANO, VERANO e EsCRIVANO, em vez de irmão, verão e escrivão; MANHANA, LANA e ROMANA, em vez de manhã, lã e romā; MULTITUDE @ INGRATITUDE, em lugar de multidão e ingratidão.

Segundo o seu voto depurador, frouxidão e vastidão passariam a ser FROUXIDADE e VASTIDADE; a podridão dir-se-ia PUTREDINE e a cerração

CALÍGINE; mas a antipatia dêste homem pelos ditongos nasais é tão feroz e absoluta, que nem sequer os tolera quando são átonos e, portanto, inofensivos.

Assim, abrangendo na sua tremenda reforma as flexões das 3.as pessoas do plural dos pretéritos (levaram, cantaram, por exemplo) António de Melo da Fonseca exige que passemos a dizer LEVÁRO, CANTÁRO como aliás pronuncia ainda agora o povo rude lá do norte de Portugal. Os futuros e condicionais seriam, já se vê, mascarados de LEVARÁNO, CANTARIANO, etc. Mas a sua fúria de <aperfeiçoar» a lingua não parou aqui.

Queria também o erudito autor do Antídoto reformar o alfabeto, introduzindo letras novas; reformar a derivação, criando inúmeras palavras para exprimir tôdas as cambiantes possíveis do mundo objectivo e subjectivo; reformar a conjugação, dando aos verbos novos modos, e tempos variadíssimos. E acreditava êle, revelando-se neste ponto precursor dos fabricantes de idos, volapüks e esperantos, que, reordenada a nossa lingua segundo os seus conselhos, por ordem do Snr. D. João V, todos os outros povos se apressariam a aprendê-la, assim enriquecida, depurada, e ao mesmo tempo simplificada guiando-a às honras e proveitos de linguagem universal.

É curioso verificar que o Tempo, e a fantasia

dos escritores modernos, lhe fizeram uma ou outra vez a vontade, como quando, por exemplo, preguntava:

«Se é justo que de cobiça digamos COBIÇAR, ¿porque não será também justo que de ambição digamos AMBICIONAR? ¿E de prosa e poeta, PROSAR e POETAR?...>>

Para convencer o Snr. D. João V da necessidade de expungir da lingua portuguesa o ão e seus anexos ou derivados, conta José de Macedo no seu Antídoto a seguinte historieta muito ingénua, por êle considerada muito decisiva :

«Quando foi de Lisboa para Londres a rainha portuguesa D. Catarina, que lá casou com Carlos II, logo em chegando ao seu palácio se sentiu molestada da inclemência daqueles novos ares, menos benignos que os nossos e menos amigos da natureza humana; e esteve, por conselho dos médicos, alguns dias na cama, até que se acabou aquela moléstia.

«Assistiam-lhe com grande cuidado as suas damas e outras muitas senhoras, em-quanto S. M. se não via de todo restituída ao mais perfeito estado

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da sua saúde. E, preguntando-lhe uma delas se queria que lhe trouxessem um caldo de galinha, depois de ter feito mui boa diligência para saber fazer esta pregunta na nossa lingua, respondeu-lhe a Rainha com esta única palavra :

«-- -Não.

«Ouvindo então esta resposta, aquela senhora, que a não entendia, disse muito admirada, voltando-se para as outras senhoras que ali estavam:

Ai, manas! ¿Que quer dizer aquilo? ¿Que palavrinha é aquela, tão grandemente feia, e tão pequenina? Eu não sei como cabe tanta fealdade em tanta pequeneza...

«E o espanto de todas as outras senhoras foi igual ao desta... »

Tão pueris como a historieta do bacharel José de Macedo são as razões que dá o Cavalheiro de Oliveira para concordar com a sua execração contra os ditongos nasais.

Este detesta o ão, porque não encontra nos caixotins dos impressores de França as vogais com til na cabeça:

«Quanto aos vocábulos que acabam em do, como torrão, trovão, ladrão, sou bem contra êles, porque não acho impressão que não duvide trabalhar nas Memórias que escrevo em português, por mêdo dêstes vocábulos; os quais, sendo sòmente usados

por nós-outros, não se acham nas impressões estranjeiras os o o com til por cima. Pode-se aqui imprimir em grego, alemão, holandês, italiano e fraucês, com muita facilidade; mas em portuguesão... difficilem rem postulasti!»

«Portuguesão» tem graça. Mas as razões do Cavalheiro de Oliveira são ridiculas. Se se podia imprimir em grego e alemão, com alfabetos inteiramente diferentes, a culpa de se não poderem tipografar o a e o o com til não estava de-certo no til. E se nós devemos alterar a nossa lingua para que os impressores estranhos a imprimam fàcilmente, o bom remédio, tolo mas radical, é mudarmos de lingua.......

A má fama de que secularmente tem gozado o nosso pobre ditongo ào, é com certeza obra dos estranjeiros que pela primeira vez se defrontam com a lingua portuguesa.

Digo isto instruido pela minha própria experiêucia, pois bem me lembro de quando, sendo mestre de português em Hamburgo, os meus discípulos alemães me assediavam com a fealdade do ao e sobretudo do ões.

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