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I e II

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Se o engenho e a arte me ajudarem a tanto, cantando espalharei por toda parte as armas e os varões assignalados, desde a Occidental praia lusitana, por mares nunca vegados antes, passaram ainda além da Taprobana; e que, esforçados em perigos e guerras, mais do que a força humana promettia, edificaram entre gente remota um novo reino que

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ma syllaba do verso; são cruzados nas seis primeiras de cada estancia, por terem a correspondencia de rimas alternando com outros versos de rima differente, e emparelhados nos dois ultimos que rimam a seguir,

Cada verso é de dez syllabas e tem a accentuação obrigada na 6 ̧a e 10.a ou na 4.a, 8.a e 10.a, denominando-se n'este caso saphicos,

A composição toda constitue um poema epico ou epopeia, e, como tal, é narrativo e objectivo. È a narração poetica d'uma empreza illustre; n'este caso, o descobrimento do caminho maritimo para a India, que é a acção, por Vasco da Gama, que é o personnagem ou o heroe do poema. A estes dois elementos ha a juntar o terceiro, que é a forma, a qual abrange o verso, a disposição estrophica e a distribuição das peças do poema. Do verso tratámos acima; quanto á disposição, é costume dividir a epopeia em cantos e estes em estancias, se o poema é rimado, como no presente.

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A ordem do poema é esta: Proposição ou resumo da materia (vide nota (1) nos «Lusiadas» as estancias I, II e III; Invocação ás Musas pedindo inspiração, estancias IV e V; -Dedicatoria ou offerecimento da obra, estancias VI a XVIII; Narração, intermeada de episodios e accessorios, estancias XIX e seguintes. Episodios são os pequenos poemas ou accidentes poeticos introduzidos na acção para lhe variar o andamento. Aqui n'este poema os episodios da Ilha dos Amores (canto IX), do Adamastor (canto V) e da morte de D. Ignez de Castro (canto III.) Accessorios são as referencias poeticas de pessoas, cousas e logares, tendentes a caracterisar e a expor a melhor luz as situações da acção. Por exemplo, nos «Lusiadas» à descripção da Lusitania (canto).

A acção em geral é alem disso realçada, como cumpre a todo o poema, por agentes sobrenaturaes que constituem o que em poetica é conhecido pelo maravilhoso. Aqui o maravilhoso empregado é o mythologico ou pagão, alliado, por vezes, com o maravilhoso christão, o que provocou ao poema as criticas que lhe foram dirigidas. È, porem, explicavel essa alliança, para o que basta citar a esse respeito a opinião de Mme, de Stael: «Comprehende-se muito bem, diz a illustre escriptora, que o christianismo representa a realidade da vida e o paganismo os adornos com que Camões quiz enfeitar a sua obra, colorindo algumas das suas principaes, passagens».

tanto sublimaram; e tambem cantarei as gloriosas memorias d'aquelles Reis que foram dilatando a Fé e o Imperio pela Africa e Asia, emquanto andaram devastando as suas viciosas terras; e aquelles Heroes que por valentes acções se vão libertando da lei da morte e esquecimento.

ESTANCIA I

Vs. 1 e 2)-Armas, façanhas ou emprezas militares, combates (metonymia, signal pela cousa significada,-Vide o nosso folheto «Figuras de Estylo». - Barões (antiq.) Varões, homens corajosos, esforçados, valorosos. Assignalados, illustres, distinctos. Da Occidental praia lusitana. De, proveniencia, vindos da. Occidental, e não a meridional porque é n'aquella que se encontra Lisboa, d'onde partiram os navegadores (synedoche o todo pela parte, Vide o nosso folheto Figuras de Estylo). Lusitana, de Lusitania, que era uma das tres grandes divisões antigas da peninsula iberica: Lusitania, Bettica e Tarraconensis. A primeira corresponde approximadamente o moderno Portugal. O poeta o designa muitas vezes por aquelle nome, e os portuguezes por Lusitanos ou Lusos.

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Vs. 3 e 4) Por, n'este caso, logar por cima do qual deslisa alguem ou alguma coisa. Mares, refere-se o poeta a cada uma das grandes porções em que está dividida agua salgada do globo, segundo os continentes que banha.Navegados, percorridos, atravessados sulcados. A frota do Gama foi a primeira, europeia, que conseguiu, dobrando mar do sul, passar além dos Tropicos. N'este sentido se deve tomar o terceiro verso d'esta estancia, porquanto não seria inteiramente conforme á verdade historica dizer que os mares atravessados pela armada portugueza munea d'antes tinham sido navegados. Os Phenicios (1), pelo Mar Vermelho, prati

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(1) Habitantes da Phenicia, antiga região da Asia, estreita facha de terra na costa occidental da Syria. Os phenicios, de origem cananeia, vindos provavelmente das margens do golfo Persico, estabeleceram-se no littoral mediterraneo, junto ao Libano, pelo XXIV. seculo antes da

cavam o commercio d'Africa e d'Asia; as esquadras de Salomão (1), tinham percorrido até o paiz de Ophir (2), que se julga ser a peninsula de Malacca ou Chersoneso d'ouro (3), dos antigos; Hammon, almirante carthaginez, dera volta á Africa desde Gibraltar até o Golpho Arabico; os Sudanezes do Egypto mantinham navios que todos os annos mandavam á costa do Malabar, buscando differentes productos que os Venezianos depois se encarregavam de transportar de Alexandria para todos os paizes da Europa. Após os Sudanezes, os mouros de Suez, de Mecca e de Jeddah continuaram a frequentar as Indias, e o Gama os foi encontrar senhores de todo o commercio do Oriente. Taprobana, antigo nome de Ceylão (Singhala, pelos indigenas) ilha no extremo meridional do Hindustão, de que se acha separada pelo golfo de Manaar e estreito de Palk. Descoberta pelos portuguezes em 1507, passou em 1656 ao dominio dos hollandezes, e, d'estes 1795 para os inglezes), a quem actualmente pertence. Tem 3.673.000 habitantes e tem por capital Colombo. Possue,pedras preciosas, rubis saphiras, grande vegetação tropical e especiarias. O chegar até à Taprobana era considerado feito sublime, por ser ahi, na opinião dos antigos, o fim do mundo, pelo lado Oriental, como, pelo occidental, o era o cabo Finisterra, (4) que ainda hoje conserva esse nome.

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nossa era. Ali fundaram cidades essencialmente maritimas, donde partiram nas suas frotas a traficar e colonisar em toda a bacia do Mediterranio, até no Mar Vermelho, no Atlantico e no Baltico. Carthago era uma colonia phenicia,

(1) Salomão, rei dos Israelitas, filho e successor de David. Construiu o templo de Jerusalem, e a sua sabedoria ficou legendaria em todo o Oriente (1082-975 a J. C.).

(2) Ophir, era uma região do Oriente, pouco determinada, onde Salomão mandava pesquizar o ouro. Era o Peru da antiguidade.

(3) Chersoneso (do grego Chersos) continente, e nesos, ilha), nome que os gregos davam a 4 peninsulas: 1.0 o Chersoneso da Thracia, hoje peninsula dos Dardanellos ou de Gallipolli;-2.o O Chersoneso-Taurico, hoje a Crimeia; 3. O Chersoneso Cimbrico, actualmente o Jutland dinamarquez; 4.o O Chersoneso d'ouro, que se suppõe ser provavelmente o Indo-China actual.

(4) Cabo Finisterra, ao N, O, da Hespanha,

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V. 6) Promettia, fazia esperar, do que era de esperar.

V. 7) Gente remota, povos longiquos, de paizes distantes.-Edificaram, fundaram (metaphora, vide o nosso folheto «Figuras de estylo»).

V. 8) Novo reino, um outro, mais um reino. Reino, no sentido de dominio, senhorio. Sublimaram, exaltaram, engrandeceram.

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bello effeito onomoto

N'esta primeira estancia se nota o paico (1) da accumulação do som vogal á, a voz mais clara e bella da linguagem e a predominante nas linguas primitivas indo-europeias, sendo, entre as romanas, a portugueza aquella em que mais predomina. A repetição d'esse som imprime á phrase um ar festival, mui proprio para manifestar sentimentos de enthusiasmo. — Aqui se indica a parte principal do assumpto, a viagem de Vasco de Gama á India e as luctas que se lhe seguiram para a implantação do nosso poderio na Asia. Na estancia II, os esforços feitos desde o reinado de D. João I e que levaram a um tal resultado.

V. 1)

ESTANCIA II

e

Memorias gloriosas, os feitos illustres, as virtudes heroicas, pelas quaes não são esquecidos (metonymia, o consequente pelo antecedente).

Vs. 2, 3 e 4) D'aquelles Reis, são os reis de Portugal D. João I, D. Duarte, D. Affonso V, D. João II, principalmente em Africa; D. Manoel I e D. João III, na Asia.

Dilatando a Fé, propagando a crença nos dogmas da religião christã. O Imperio,o dominio (portuguez).

Terras viciosas, corruptas, depravadas, habitadas por gente dada aos vicios ou á vida licenciosa (Diccionario contem

(r) Onomatopéa, vid, o nosso folheto «Figuras de estylo».

poraneo); talvez, melhor, no sentido de povos barbaros, infieis, que não professavam a religião christã (metonymia, a região pelos seus habitantes).Andaram devastando, destruindo, assolando, para castigo dos seus habitantes.

Vs. 5 e 6)-Por, designa meio.- Obras, acções, feitos.Valerosas, valorosas (antiq.). Se vão da lei da morte libertando, se tornaram immortaes, pela perfeita lembrança dos seus feitos. Allude o poeta aos heroes mencionados no poema.

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Vs 7 e 8) Por estes dois versos começa a construcção grammatical d'estas duas primeiras estancias: Cantando espalharei. as armas e os varões, etc. Cantando, celebrando em verso; espalharei, divulgarei, tornarei conhecidos, afamados. Se a tanto me ajudar o engenho e arte, algumas das modernas edições teem supprimido a virgula que nas antigas apparecia depois de engenho. Todavia, Gomes d'Amorim (1), apezar das suas amiudadas correcções, mantem-n'a. Será porque com a virgula se deve subentender, por zeugma (vide o nosso folheto «Figuras de estylo»), o verbo ajudar na segunda oração coordenada e arte, evitandose assim a critica de que ha solecismo (2), pelo verbo vir no singular, sendo o sujeito composto? Mas a grammatica admitte isso, quando os sujeitos, sendo todos do singular, veem depois do verbo, como no presente caso. Engenho, inventiva, faculdade de inventar (Diccionario contemporaneo), talento.--Arte, saber, habilidade, pericia em empregar os meios necessarios para conseguir um resultado (Id.).

1) Os Lusiadas de Luiz de Camões», ed. critica e annotada por Francisco Gomes d'Amorim, Lisboa, 1899, 2 tomos,

(2) Solecismo (grammatica), erro de syntaxe.

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