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· Como fe

aparelhou fera receiter o mar tyrio.

3 Era ifto em hum Sabba-
do,velpora da quarta Dominga
da Quaresma, diffe logo miffa
em acçam de graças com muy
particular devaçam, por fer a
vltima que neste mundo havia
de celebrar, tomando por
fuas mãos o viatico pera fa-
zer o vltimo caminho def-
te defterro pera a patria defeja-
da. Naquella mesma tarde bau-
tizou fincoenta gentios, defpe-
diofe de algus Portuguefes, que
mandou chamar pera os con-
feffar,repartio entre os Chrif-
tãos as reliquias, contas, & vef
fe
tidos que tinha; ordenou que
retiralem da cafinha, em que
eftava,os ornamentos com que
dizia miffa,& os mandou a An-
tonio Cayado, por nam ferem
maltratados dos Mouros que o
haviam de vir matar;& tudo fa-
zia com hum rosto tam alegre,
& com hum fembrante tam de-
faliviado,que a todos tirava a
fofpeyta do mal que podiam
temer. Deyxou sómente confi-
go hum Crucifixo, co duas ve-
las pera acompanhare a fagra-zar das alegrias eternas. Def-
da imagem;que este era o vni-pediose delle Antonio Cayado
co refugio, & o fiel copanhey-
ro,q elle sò queria ter, naquella
sua tam desejada hora; julgan-
do que nunca eftava menos sò,
que quando estava sò com tal
amigo,& co tal defenfor;a que
offerec a a vida, & por que de-
fejava padecer muytas mortes.

yado junto da noyte a fallar co
o bemaventurado Padre, pera
lhe dar modo com que escapaf-
le da morte,o achou paffeando reftiofe de
junto da cafa,veftido em huma novo. E có
roupeta nova (que parece pe-huma jo.
ra efte fim trouxe da India, por-brepeiz,
que em outro tempo fempre pera rece·
ber amor
trazia vestidos velhos, & re-te.
mendados) & com a fobrepe-
liz revestida fobre a roupeta, q
eftas eram as armas brancas co
que efte foldado do Senhor fe
guarnecia nefte combate con-
tra a morte: chegoufe o fervo
do Senhor a Antonio Cayado,
que vinha muyto trifte, & pon-
dolhe a mam no peyto lhe dif
fe, que tristezas fam eftas meu
fenhor Antonio Cayado, eftay
certo que mais aparelhado ef
tou eu pera morrer do que os
inimigos de Chrifto, pera me
matar; eu perdoo ao Rey que
he moço,& tambem a Rainha
porque he enganada; isto disse
com tal ferenidade de rosto, &
alegria dos òlhos, como quem
jà estava de caminho pera go

4 Voltando Antonio Ca

com entranhavel fentimento,
& voltou ao paço com intento
hou-
de avizar ao Padre do que
veffe de novo, nam se persua-
dindo núca que estava isto tam
apreffado;& vēdo como o P. fi-
cavasò(por ter madado pera fò-
ra dous noços qo acōpanhavam
& aos mais Portuguefes,afim de

os livrar do perigo,porq os nam mataffem tambem por eftare em fua companhia) the mandou dous moços de fua cafa, pera velarem a do Padre,& lhe darem conta do que focedelfe,pera elle logo acudir.

5 Andou o fervo do Senhor paffeando em hum terreyro junto da cafa, atè perto da meya noyte,efperando pela ditofa hora, pela qual fufpirava tam vivamete, q fahia fòra ra tomar os hofpedes que o viOs grades nham matar a fua cafa; contadefejos que tinha de vam eftas duas teftimunhas de morrerpor vifta, g trazia os olhos pregaChrifto.

pe

dos no céo, as mãos ora levan

tadas, ora eftédidas à maneyra de cruz,ora pondofe de joelhos diante do Crucifixo, lançando do coraçam huns tam intimos fufpiros, pelo martyrio que efperàva,que lhes causava grāde admiraçam;& como era jà tam tarde, & os crueis algofes nam vinham, porque estavam esco didos,& nam ouzavam chegar, em quanto o viam paffeando; fe recolheo pera cafa, pondose em oraçam de jeelhos, diante do fancto Crucifixo,que sò lhe ficâra, pera goarda, pera es forço, & pera confoloçam, o qual tinha posto entre duas vélas acezas; & como o trabalho do dia tinha fido grande, & anoyte The parecia muy comprida, por nam chegar a hora por elle taō defejada,em que havia de ama

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25.

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admiro aqui do P.Gōçalo dor-
mindo,do q delle mesino oran-
do;nam vi fono mais myfterio-
so, në repouso mais acordado;
ninguẽ nuca me efpatou tanto
vigiado, quãto o P.Goçalo ago-
ra me efpata dormindo. Tepo
efte dormir Eftavam
pera
os criados de Antonio Cayado
se pregar olho, co arreceyos do
perigo do fervo de Deos,& elle
ram defcuydado,& fóra de me-
dos,qdormia. Quãdo nomar de

era

defte divino navegate,q hia tao fora de medo,q quãdo os pilotos tremiam,elle dormia:naõ vi fono mais cheyo de misterios q efte do P.Gōçalo; espera a morte por momētos,& eftâ co tudo tam descafado, q nam perde o fono ordinario: vigiam,& treme os copanheyros com medo do perigo alheo,& elle com tal ferenidade,tam feguro,tam sobre fy, & tam fem perturbaçam, que repoufava quieto. Como també focedeo a 3 S.Pedro,o qual na mefma noyte vefpora do dia,em q por mandado del Rey Herodes o haviaõ de matar, dormia hu sono muy defcanfado, como se das duras cadeas,com q estava amarrado, fizefle cama branda, em que o fono lhe prendeffe, & ataffe os fentidos:b In ipfa noite,er at Petrus dormies vinctus catenis duabus.Que 12.6. com efta fegurança vivem os Sanctos no meyo das mayores perturbaçoens; dormia Pedro, & dormia o Padre Gonçalo em tal occafiam, porque Deos por

Sam Pedro tambe dor mia quà· do espera

va pela muy morte.

Tiberias fe levatou aquella turelles vigiava; dormiam,porque
bulēta borrasca, com a qual os
Apoftolos ao primeyro efcar-

a

nam tinham cuydado, que lhes
moleftaffe a confciencia; dor-
miam, porque lhes namn dava
pena o temor de os matarem;

Mat.ca.8.n. céo das ondas fe derao por per-
didos,brâdado, Domine,falua nos
perimu:30 Senhor, q noutro te-dormiam,porque aquelle fono
po levava as noytes vigiãdo, &
orando no mõte,agora defcan-
çava,& dormia na barca,ipfe ve-
rò dormicbat,pera q vejamos o a-
nimo, a fegurança, & a cofanca

Ihes reprefentava o da morte,
que padecida por Chrifto, pe-
ra elles era verdadeyra vida.

4 Eftando pois o fervo de
Deos nefte repouso, entráram

de tro

b

Actor. cap.

que

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1

claramente nos conftar, q ma-
tavam ao Padre pelo odio que
tinham (ao Senhor. Achàram
ao fervo de Deos cingido có o
cilicio de ferro, de que elle fe
tinha armado, mais cotra fy,que

des efpantos, confirmando fua
barbara, & maliciofa opiniam,
nam podia deyxar de fer hum
famofo encantador, que andava
vestido de ferro jūto da carne;
affim julga o mundo do nam
entende; & tam encontradas
fam as obras dos Sanctos, co os
penfametos dos peccadores.

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de tropel os Mouros, & alguns Cafres na fua cafinha, de noyte, porque taes obras aborrecem a luz do dia; dàm fobre elle de repente, acometemno Da morte dormindo, como traydores, que deram parece haviam medo delle vi-cotra feus inimigos,fizeraō grã40 P.Gon- giando; & amarrandoo forteçalo da mente, The atàram ao pescoço Sylveyra.huma cinta tirada da trunfa de hum dos Mouros, porém mais prezo eftava elle com as ataduras da charidade de Chrifto; & pujando de huma, & outra parte o afogàram, dandolhe o genero de morte que o bemaventurado Padre tanto, d'antes tinha pedida a Deos, & prophetizada a muytos; & pera que nam faltaffe fangue, pois tanto dates lho virao vèrter pelas mãos(dizendo miffa na cala de Sam Roque) lançou grande quantidade pela boca, & narizes,dando juntamente,como liberal pagador,o fangue, & o'ef També apirito a feu criador. Arremetéfrontaram tam logo ao fancto Crucifixo a fagrada (q nam deviam perdoar ao Seimagem nhor, pois por amor delle mafigo. tavam ao fervo) executàram na fagrada imagem feu barbaro,& diabolico furor, fazendoa toda em pedaços, vingandofe juntaméte do difcipulo,& do mestre, do Apoftolo,& de Chrifto, do fervo,& do fenhor; permitindo elle tam grande facrilegio, pera acopanhar efte gloriolo Padre em fuas afrontas, & pera mais

tinha co

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em hu rio.

5 Feyto ifto lhe atàran hua corda ao pescoço,& o levàram arrasto, tingindo os cami nhos, & as ruas com feu pre ciofo fangue, do qual ainda ao outro dia fe acháram as ruas banhadas; affim o leváram, & σ Lançarà. lançaram atado a hum pezado lhe o corpo madeyro, em hum rio, que perto corria, defconhecido entre nòs pelo barbáro nome de Mõcengueffe,mas nefte particular mais veturofo, q o rio q regava o Paraizo terreal, mais rico Gen.c.2.n. que todos os mais de Monomotapa, uius egredi q co feu ouro(melhor é o celebrado Tejo, & que o fabulofo Pactòlo)regam a terra, pois efte em fuas augoas recebeo outro mais rico penhor, & outro mais preciofo thefouro; & pera nôs rio sẽ duvida, muy faudofo,por nos agafalhar em fua madre a tam sãcto depofito, & fervir de

O 3 fepul

10. Et flu

ebatur de

loco voluptatis ad ir

rigandu Pa

radifum.

Em ġ dia, 3 anno

Oreo O

fepultura a hum nofso tam prezado Padre, & tam affinalado varàm,ficando nos privados da efperança de poder gozar da confolaçam de poffuir fuas reliquias. Cumprindolhe Deos noflo Senhor neste particular, o que elle tanto dante mam tinha prophetizado com grande alegria fua, que havia de fer martyr, que feu corpo havia de fer lançado em hum rio, aonde nam havia de fer achado.

6 Foy a morte do Padre Gonçalo aos 16.de Março de 1561.na antemanhã da quarta Dominga da Quarefma, a qual Goçalo. vulgarmente os Portuguefes chamam Domingo de Suzana, porque ao Sabbado precedente fe lè na Epiftola da missa a hiftoria desta Sancta, & daqui por ventura fe occafionou o engano do noflo Padre à Maffeo, que diffe que fuccedeo o martyrio do PadreGonçalo em 11. de Agosto dia de Sancta Suzana Virgem,& Martyr; & no mefmo erro cahio o Padre Pedro de Ribadeneyra.

d

Maffeus in Epift.felect. lib.2.Epif.4.

P.Pet.de Ri

bad, in vita aris Laini

b.2.c.11.

7

gando à India pela falvaçam das almas; entrando na Cafraria,nam pera demandar o ouro das minas, mas pera converter as almas dos gentios; nam pera fe enriquecer a fy, mas pera os falvar a elles prègou como fan&to,morreo como Apostolo: alcancou em Monomotapa,o que tanto tinha desejado em Portugal. Ainda que era illuftre pelo fangue que herdou de feus avòs, mais illuftre ficou pelo sãgue que derramou por Chrifto. Morreo affogado,que he morte apreffada,& mayor era a pref- fogado, co fa que elle tinha de dar fua vi- garrote. da;o garrote lhe tirou logo o poder refpirar, mayores eram os fufpiros que elle tinha de ef pirar; hoje tem no cêo as riquezas,que defprezou na terra hoje logra com Chrifto a vida, que perdeo por Christo.

8 Com fer efte Padre tam

ba

admiravel na vida que teve, & na morte que padeceo, que ftava so a vida pera fer tido por fancto,& bastava só a morte pera fer declarado por martyr; com tudo nam poffo deyxar de me queyxar affim do defcuydo dos noffos religiofos de Portugal, & da India; como da pouca lembraça dos illuftrifsimos pa

Affim acabou na Cafraria morto pela Fe de Chrifto, q prègava,& às mãos de Mouros, que reprendia,aquelle illuftrif fimo varam Dom Gonçalo da Sylveyra, filho do Conde darentes de tam illuftre confeffor Sortelha, Doutor em Theologia,primeyro Prepofito da cala de Sam Roque, & Provincial da Companhia de Iefu, nave

de Chrifto,por lhe nam procurarem atégora fua canonizaçam,tam merecida, & tam devida: & verdadeyramente me

perfua

Morreo a

Aiègora fe

nam trata

de Jua canonizaçaō.

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