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LXXXVII.

Partimos-nos assi do sancto templo,
Que nas praias do mar está assentado,
Que o nome tem da terra, para exemplo,
Donde Deos foi em carne ao mundo dado.
Certifico-te, ó Rei, que se contemplo
Como fui destas praias apartado,
Cheio dentro de duvida, e receio,

Que apenas nos meus olhos ponho o freio.

LXXXVIII.

A gente da cidade aquelle dia,

Huns por amigos, outros por parentes,
Outros por ver somente, concorria,
Saudosos na vista, e descontentes :
E nós co'a virtuosa companhia
De mil religiosos diligentes,

Em procissão solemne a Deos orando,
Para os bateis viemos caminhando.

LXXXIX.

Em tão longo caminho, e duvidoso,
Por perdidos as gentes nos julgavam ;
As mulheres c'hum choro piedoso,
Os homens com suspiros que arrancavam:
Mais, esposas, irmãas, que o temeroso
Amor mais desconfia, accrescentavam
A desesperação, e frio medo

De já nos não tornar a ver tão cedo.

XC.

Qual vai dizendo: O′ filho, a quem eu tinha
Só para refrigerio, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,

Que em choro acabará penoso, e amaro;
Porque me deixas misera, e mesquinha?
Porque de mi te vás, ó filho charo?
A fazer o funero enterramento,
Onde sejas de peixes mantimento?

XCI.

Qual em cabello: O' doce e amado esposo,
Sem quem não quiz amor que viver possa;
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida, que he minha, e não he vossa?
Como por hum caminho duvidoso
Vos esquece a affeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?

XCII.

Nestas e outras palavras que diziam
De amor, e de piedosa humanidade,
Os velhos, e os meninos os seguiam,
Em quem menos esforço poem a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quasi movidos de alta piedade:

A branca area as lagrimas banhavam,
Que em multidão com ellas se igualavam.

XCII.

Nós outros sem a vista alevantarmos,
Nem a mai, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do proposito firme começado:
Determinei de assi nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado;
Que postoque he de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.

XCIV.

Mas hum velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Tres vezes a cabeça, descontente;
A voz pezada hum pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C'hum saber só de experiencias feito,
Taes palavras tirou do experto peito:

XCV.

Oh gloria de mandar! Oh vaa cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos fama!
Oh fraudulento gosto, que se atiça
C'huma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho, e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades nelles exprimentas!

XCVI.

Dura inquietação d'alma, e da vida,
Fonte de desamparos, e adulterios,
Sagaz consumidora conhecida

De fazendas, de reinos, e de imperios:
Chamam-te illustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vituperios;
Chamam-te fama, e gloria soberana,
Nomes com quem se o povo nescio engana!

XCVII.

A que novos desastres determinas
De levar estes reinos, e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo d'algum nome preeminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometterás? Que historias?
Que triumphos, que palmas, que victorias?

XCVIII.

Mas ó tu geração daquelle insano,
Cujo peccado, e desobediencia,

Não somente do reino soberano

Te poz neste desterro, e triste ausencia:

Mas inda d'outro estado mais que humano

Da quieta, e da simples innocencia,

Idade d'ouro, tanto te privou,

Que na de ferro, e d'armas te deitou:

XCIX.

Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve phantasia;
Já que á bruta crueza, e feridade,
Pozeste nome, esforço, e valentia;
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeo tanto perde-la quem a dá:

C.

Não tens junto comtigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue elle do Arabio a lei maldita,
Se tu pela de Christo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras, e riqueza mais desejas?
Não he elle por armas esforçado,
Se queres por victorias ser louvado?

CI.

Deixas criar ás portas o inimigo
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o reino antigo,
Se enfraqueça, e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto, e incognito perigo,
Porque a fama te exalte, e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga copia,
Da India, Persia, Arabia, e da Ethiopia!

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